Querida Zuzu
Cá estou, como prometido, a dar-te os parabéns pelo teu livro.
É uma homenagem linda à tua filha mas é muito mais do que isso...
É a expressão clara da dor de uma mãe, de uma família inteira, que foi confrontada com essa perda terrível.
Também a mim, esse fim de semana fatídico, me tem acompanhado ao longo destes 20 anos. Recordo-o recorrentemente com a clareza de um fim de semana recente...
Era um sábado normal, de Inverno, em Beja, com sol aberto, céu azul, muita luz, daqueles em que só se sente o frio quando o sol se põe, porque durante o dia o solinho faz-nos companhia e aquece-nos. Estávamos em casa, descanso merecido, depois da correria normal do trabalho semanal, quando o telefone tocou, logo a seguir ao almoço.
Era a Odília, em choque, a dar-nos a notícia e simultaneamente mostrava a preocupação convosco, tu e o Zé que, na situação terrível não tinham ninguém Beja.
- Vê lá Lúcia se podes ir ter com eles - pediu.
Fiquei meio paralisada mas fui. Cheguei ao apartamento onde morava a Marta e encontrei-os completamente esmagados pela situação, ainda incrédulos, sem reação...
Fui incapaz de conter as lágrimas, de falar, senti-me impotente para vos consolar. Como se consolariam pais que tinham acabado de perder a sua menina?
Não sei quanto tempo se passou até que tu conseguiste olhar-me de frente e ao veres-me os olhos molhados disseste:
- Tu choras Lúcia, mas eu não, porque isto é um enorme e terrível pesadelo e quando acordar vai estar tudo como dantes.
Como desejei que assim fosse... não consegui contradizer-te.
A tarde foi passando e a triste realidade foi tomando forma, à medida que iam chegando a Beja os familiares mais próximos, uns a seguir aos outros.
Ao fim do dia partiram para a Amareleja. Ficaram connosco a Odília, o Rodrigo e os miúdos deles. Ainda era preciso tratar das burocracias mas era fim de semana o que parecia complicar tudo. No hospital tinham avisado que não era possível avançar nada (em relação à autópsia) sem a ordem de um juiz... Lembrei-me que uma colega educadora da Equipa de Educação Especial era casada com o Juiz Valente ( já falecido) e telefonámos. Quando se inteirou da situação mostrou-se imediatamente disponível para ajudar. Convocou um funcionário do tribunal , com o qual falámos a seguir, e o processo avançou de seguida, com continuação durante todo o domingo. Ocasionalmente quando me cruzava na rua com o Juiz Valente lembrava-me sempre dessa sua preciosa ajuda, em hora difícil, e agradecia-lhe interiormente sem ele saber...
Na segunda-feira de manhã, acompanhámos a saída definitiva da Marta de Beja, para a sua última morada no cemitério da Amareleja.
Que tristeza Zuzu, que fim de semana!...
Os miúdos, os meus e os da Dila e Rodrigo, habituados a estar juntos no Verão e, às vezes, noutra ocasiões, estiveram praticamente em autogestão, todo o fim de semana, portaram-se à altura, sentindo a gravidade da situação, ocupando o tempo e protegendo o mais pequenito, o Andrezito com apenas 5 anitos.
Por tudo isto e, pela amizade que nos une, este livro tem um significado especial para mim. Por outro lado reconheço agora, com mais clareza, a tua força e coragem para durante estes 20 anos, conseguires, aparentemente, fazer uma vida normal, enquanto te debatias interiormente com tantas emoções e sentimentos, por vezes contraditórios.
Alem disso, conseguiste também, através dessas tuas cartas diárias, das narrativas do quotidiano, contar a tua história, da família, de amigos e até do contexto social do país e do mundo, durante todo esse tempo.
Bem hajas Zuzu, por tê-lo feito e dessa forma simples e clara, tão simples e natural mas que nos prende à leitura do princípio ao fim e, acredito, que quase foi tb. uma terapia para ti.
Beijinhos amiga
Lúcia Vilhena
Beja, 5 de Out. de 2015
A minha resposta:
Minha querida amiga Lúcia
Há muito muito tempo que quando me emociono, fico com um nó na garganta e
no estômago e nem uma lágrima corre dos olhos, nem os molho!!!
Hoje, ao ler este teu mail tão sentido e lembrando aquele dia terrível, e o
apoio que vocês nos deram, consegui chorar! Não muito, mas os olhos
encheram-se-me de lágrimas. Não fiques incomodada por eu ter chorado... faz-me
bem chorar, porque acumulo tudo cá dentro... deixei de chorar há muito...
Vocês, tu e o Zé foram fantásticos, nunca me esquecerei do apoio que vocês
nos deram, no Volskwagen, tu e o Zé, naquela noite muita fria de Fevereiro, com
um nevoeiro quase cerrado, revesavam-se para nos levarem a vossa casa,
onde uma mesa posta e farta com tudo para comer nos esperava... fazíamos
que comíamos, porque a vossa atenção merecia isso, mas o nó na garganta era tão
apertado, que não conseguia (eu pelo menos!) que a comida passasse. Deste-me a
tua cama, onde tentei dormir com a minha prima Guida, tu insististe para que
nos deitássemos, e lembro-me de ter passado pelo sono, ter acordado muito
estremunhada, e dizer à minha prima: "Guida, eu não posso estar aqui! eu
tenho que ir para junto da Marta!, é a minha noite última noite com ela, de
despedida!" e levantei-me muito à pressa e pedi-vos a ti ou ao Zé
que nos fossem levar à Igreja!!!
Sempre preservei muito a amizade,e sempre senti que cabe aos amigos o apoio
quando um deles está a precisar... mas vocês ultrapassaram toda a
disponibilidade que eu poderia desejar. Nunca , nunca o poderei
esquecer...
Mais tarde, soube pelo Rodrigo e pela Odília que foram vocês que
procurararm pedir quem pudesse desbloquear a situação, para se fazer a autópsia
porque era fim de semana, e não se sabia quando a situação ficaria
resolvida.
Hoje, talvez tivesse havido alguém no hospital que nos desse apoio
psicológico, pelo menos ouve-se isso na televisão, mas há 20 anos, mandaram-nos
embora, levaram a Marta para a morgue e nós, eu e o Zé, ficámos em choque,
sentados no carro, sem nos apercebermos do que nos estava a acontecer... o
maior drama da nossa vida... por isso a minha resposta quando te vi chorar! não
me lembrava de te ter dito isso... mas era na verdade como me sentia... um
pesadelo do qual iria acordar em breve!!! grande engano!!!
Publicar o livro fez-me muito bem, sinto que cumpri o que há muito prometia
à Marta, e todos os que o têm conseguido ler... muita gente não consegue
enfrentar a minha dor!!... têm tido a reacção que tu tiveste, e isso deixa-me
muito reconfortada. Não me sinto feliz... sinto-me com o dever
cumprido!!! A Marta se houver vida para além da morte, estará a assitir a isto
e estará orgulhosa da mãe que tentou que em livro ficasse registada a sua curta
vida.
Muito e muito obrigada minha amiga. Como é bom sentir que temos amigos que
nos dão o apoio nas ocasiões mais difíceis da vida, adoro ir à Manta Rota e
estar convosco, com os teus filhos, com a Alda, com as tuas queridas netas,
lindas e espertas que eu adoro, apesar de as ver quase de ano a ano!
Um grande, enorme beijo para ti e para o Zé da amiga Zuzu
Casa Branca, 5 de Outubro de 2015