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MARTA NO MONTE DA TIA DO PAULO.ÚLTIMA FOTO DEZEMBRO DE 1994
Sábado, dia 4 - dia fatídico!
Eu e o Zé levantámo-nos cerca das 7
horas da manhã. Tínhamos combinado com o Tó, irmão da Vina, sairmos de Massamá,
bastante cedo, em direcção a Beja. O Tó e o Zé iriam deixar-me a Beja e eles
depois seguiam caminho para Amareleja, para engarrafarem o vinho. A manhã estava muito calma e tranquila.
Um sol de Inverno iluminava os campos dando-lhes uma serenidade que se nos
transmitia. Estavámos muito bem dispostos. Havia muito pouco trânsito e os dois
carros seguiram sempre próximos um do outro. Parámos no Restaurante A Chaminé,
ponto de paragem obrigatório para os viajantes daquelas paragens, bebemos café,
apreciámos o sol esplendoroso daquela manhã fria de Fevereiro e retomámos a
nossa marcha até Beja. O Tó aproveitou para filmar o recinto do restaurante e a
paisagem circundante. Fizemos mais uma
hora de caminho e lá estava Beja, com a sua majestosa torre de Menagem e o seu
casario branco. Dirigimo-nos através das ruas adormecidas de Beja, para a casa
da Marta. Eram 10,30h da manhã. Saímos dos carros, o Tó começou a filmar-me
enquanto eu me dirigia para a porta do prédio e tocava à campainha. Aguardei um
pouquinho e ouvi a voz ensonada da Marta no intercomunicador
" Quem é?.... sim...." . Então eu disse-lhe: " Marta é a mãe, não precisas de descer porque só trago dois sacos!..."
A
Marta respondeu-me: "Sim , mãe!"
Voltei a correr para o carro, o Tó
conversava com o Zé e filmava. Peguei nos sacos e dispusemo-nos a entrar no
prédio. A porta não se abria. Voltei a tocar para a Marta. A campainha tocava,
tocava e ela não me respondia, comecei a inquietar-me, mas ao mesmo tempo
pensava que talvez ela estivesse na casa de banho. Aqueles segundos
pareceram-me horas. Porque é que ela não abre a porta? o que se passa?
perguntava eu ao Zé e ao Tó. Coloquei o dedo na campainha e já bastante
assustada não parei de tocar, o meu coração estava apertadíssimo!!!
O
Paulo que dormia no outro quarto, acordou com o toque insistente da campainha e
levantou-se. Encontrou a Marta caída em cima do sofá, mesmo à entrada da sala.
Abriu-nos a porta, pegou na Marta, sentou-a no seu colo e procurou reanimá-la,
baixando-lhe a cabeça. Quando chegámos lá acima, já ia com um mau
pressentimento. Entrámos e o Paulo disse-me: "A Marta teve uma quebra
de tensão e desmaiou!..." . Cheguei-me ao pé dela, tirei-lhe os
cabelos lisos e compridos que lhe escondiam todo o rosto e vi a Marta, com uma
expressão terrível, com os olhos vidrados e sem vida, os lábios roxos e uma cor
de cadáver. Fiquei assustadíssima! Aquilo não era tensão baixa, o que
seria?!...
Deitámo-la no sofá e com o meu
desespero de mãe, procurei fazer-lhe desajeitadamente uma massagem cardíaca com ambas as mãos e a Marta
começou a gemer e a deitar espuma pela
boca!... Que desespero! Que momentos tão aflitivos! Peço ao Paulo que chame uma
ambulância, com a máxima urgência. A Marta está muito mal. A Marta está muito
mal. O Zé e o Tó olhavam atónitos toda a cena. Não me lembro se procuraram
ajudar-me, eu chamava a Marta para que ela reanimasse. Os bombeiros apareceram.
Não vinha nenhum médico de urgências. Vinha o motorista da ambulância e um
rapaz de 18 ou 20 anos sem qualquer preparação. Precisávamos de levar a Marta o
mais rápido possível para o hospital. Não houve gritos, não houve barulho.
Ninguém teve tempo de se manifestar. Penso que os vizinhos do prédio não se aperceberam
do drama terrível que estava a acontecer no 2º andar Esquerdo. Acompanhei a
Marta na ambulância. Havia uma máscara de oxigénio que o rapaz procurava pôr na
boca da Marta, sem qualquer convicção, a Marta espumava da boca e gemia. Os
solavancos da ambulância faziam-me andar aos tombos, parecia-me que iam devagar
de mais. Dirigi-me ao motorista e pedi-lhe para irmos mais depressa: "Por favor, vamos mais depressa, a
minha filha está muito mal!..."
O
homem, mal humorado disse-me: " Não
posso ir mais depressa por causa do trânsito!..." . Mas ouviu o meu
pedido, ligou a sirene e com toda a força
lá fomos a caminho do hospital.
A
Marta deu entrada na sala dos cuidados intensivos do Hospital de Beja, eram
cerca das 11,30 horas.
Dispusemo-nos
a esperar. Esperar era só o que podíamos fazer. Olhávamos uns para os outros
sem encontrarmos resposta às nossas interrogações. A partir do momento em que a
Marta entrou nos cuidados intensivos, eu fiquei mais descansada, um pouco mais
tranquila. Nunca chorei.
Esperava
a todo o momento a chegada do médico dizendo-me que a Marta já tinha reagido e
estava bem. " A Marta era a mais
saudável, a mais forte, a mais corajosa, nada de mau iria acontecer-lhe! "
- pensava eu. E dizia-o ao Zé, ao Tó e ao Paulo. Não nos atrevíamos a fazer
quaisquer prognósticos. Nada sabíamos do que estava a acontecer, lá dentro,
naquela sala onde entrara a Marta.
Começámos
a achar que o tempo tinha parado. Ninguém nos vinha dizer nada, ninguém se nos
dirigia. Ao fim de uma hora, o médico mandou-nos chamar, a mim e ao Zé, e
disse-nos que a Marta estava muito mal, que não reagia aos tratamentos e que
estavam sem esperanças de a salvar. Deixaram-nos ficar no gabinete ao lado da
sala onde estava a Marta. Aí comecei a perceber que a situação era gravíssima.
Ninguém, médicos e nós, sabia dentro daquele hospital qual a doença que vitimava
a Marta. Propus levarmos a Marta de helicóptero para Lisboa, disseram-me que
não valia de nada. Penso que nesse momento a Marta já estaria morta.
O
médico de serviço disse-me que por duas vezes a Marta reagiu aos tratamentos,
mas por breves segundos, e que ainda conseguiu dizer que tinha uma dor muito
forte no pulmão. Na sala ao lado eu ouvia os médicos a chamarem-na, gritando o
seu nome "Marta! ... Marta!..." , mas a Marta já não reagia a esses
chamamentos.
Uma
enfermeira veio ter comigo e disse: - "
Se acredita em Deus, reze, só um milagre pode salvar a sua filha!..." Agradeci-lhe, mas não
encontrei palavras para rezar a Deus! Ele tão poderoso, consente que uma jovem,
linda, boa, meiga, sem vícios, que adorava viver e adorava a vida, morra ?!
Não
encontro palavras para Lhe dirigir. Viro-me para a parede da sala onde está a
Marta e com as mãos na parede, falo-lhe muito baixinho e digo-lhe: " eu estou aqui, eu estou a dar-te a
minha força, Marta a mãe está aqui,
por favor não partas!... e repito, com toda a minha convicção: "Força Marta, Força.... Força...."
. Sinto-me impotente. Sinto que a Marta
se me escapa. Sinto que ela está morta. Não choro alto, não grito, não tenho nada
para dizer ou fazer. Estou vazia, parada, em choque.
Vêm
perguntar-me se quero um calmante, tomo-o e aguardo que venham ter comigo.
Estou de mãos dadas com o Zé. Precisamos da força de ambos para aguentarmos
este momento tão terrível. Não falamos. Esperamos. Há um grande silêncio à
nossa volta. O Paulo vem até junto de nós. Ficamos todos juntos no corredor. A
porta abre-se e o médico diz-nos:- "
A Marta está morta! Não podemos fazer mais nada. Podem entrar!..."
Eu
estou atónita, eu não quero ouvir aquelas palavras horríveis, olhamo-nos
incrédulos e de repente o Paulo transborda toda a sua raiva , dá um murro na
porta em frente, que fica com um buraco enorme e sai a correr do hospital. Ainda
corro atrás dele, mas como ele sai para a rua, fico ali, digo ao Tó que a Marta
morreu e que vá dar apoio e assistência ao Paulo que está completamente
desnorteado. Volto de imediato para dentro e entro na sala onde está o corpo nu
lindo da Marta. Tudo nos parece irreal,
tudo nos parece uma mentira. Choro. O Zé chora a meu lado. Há médicos e
enfermeiros na sala e todos choram a Marta. Olho incrédula. Vêm ter comigo,
pergunto-lhes se têm a certeza de que a Marta está morta, abanam a cabeça a
confirmar. Aproximo-me da Marta, está gelada, está nua e o seu corpo esbelto de
jovem de 21 anos jaz ali. Mexo-lhe, massajo-a, seguro-lhe nas mãos habilidosas
e bonitas, beijo-a e não percebo o que estou ali a fazer. Quero acreditar no
que me disseram, "A Marta está morta", mas não consigo acreditar,
no meu cérebro tudo está em turbilhão. Perco a noção do tempo. Estamos ali há
muito pouco tempo. Não há nada que eu possa fazer ali. Olhamos, mexemos na
nossa filha tapada com um lençol verde claro . Ao fim de algum tempo, dizem-me
que a Marta tem que ser levada dali, para onde? pergunto; para a Morgue! que momentos terríveis estamos
a viver! a realidade é tão brutal, que nos parece um pesadelo. Levam a Marta.
Vejo-a a ser levada. Ficamos sós. Olham-nos. Há muita pena nos olhos do
pessoal. Olhamos sem ver. Precisamos de sair dali, daquele pesadelo!
São
14horas da tarde! Cá fora sentimo-nos perdidos. Como podemos deixar que a nossa
filha morresse dentro daquele hospital! Quando ali entrei eu tinha tantas
esperanças! Três horas foram suficientes para destruírem uma família. A Marta
partiu, para sempre. O Sol encandeia-nos. A tarde soalheira de Inverno está
amena e tranquila. Como a Marta gostava dos dias de Sol. Nunca mais verá o Sol,
as árvores, os pássaros.
Dirigimo-nos
para o carro, entramos, fechamos as portas e ficamos parados, somos autómatos!
Precisamos de sair dali, mas uma força misteriosa obriga-nos a ficar. Vamo-nos
sem a nossa filha? Como pode isso
acontecer?
Partimos
daquele local tão cruel.
Vamos
para a casa da Marta, não temos outro sítio para onde irmos. Ali tudo nos
lembra a Marta. Choramos, choramos muito. Olhamos a casa .As suas coisas, os
seus livros, o seu cheiro reinam por toda a casa.
A
cama está aberta como ela a deixou,
quando saiu da cama a correr para me abrir a porta, a mim e à morte! No
parapeito da janela há um copo de iogurte vazio e uma banana em meio que a
Marta comeu ao deitar. Ao lado o dossier aberto, com apontamentos e a
esferográfica em cima, indicando que o sono fora mais forte e que o estudo
ficara em meio. Vamos conseguir resistir a tão grande desgosto? Precisamos de
avisar a família e os amigos. É importante que eles saibam o que se está a
passar.
Tribunal Judicial da Comarca de Beja
Serviço do Ministério Público
Conc
9-5-95
Resulta
dos autos que no dia 4 de Fevereiro de 1995 Marta Varela Andrade Rodrigues
Baleiro, (id- fl. 2), faleceu no Hospital Distrital de Beja, tendo sido
comunicada a sua morte por este hospital - fls. 10 a 12 e 2.
Efectivada
a autópsia resulta que a causa da sua morte se ficou a dever a edema pulmonar,
conforme relatório de autópsia de fls. 6.
Foi
efectuada recolha de vísceras para realização de exames toxicológicos, tendo os
mesmos resultado negativos - fls. 16.
Aprovado
que se mostra a causa da morte não resulta dos autos qualquer outra diligência
útil a realizar no seu âmbito atendendo ao facto de que a sua morte se fica a
dever ao referido edema pulmonar e não haver quaisquer suspeitas mínimas de
crime relacionado com a mesma.
Nesta
conformidade, declaro encerrado o presente inquérito e determino o seu
arquivamento, nos termos do disposto no artº 2777, nº1 do C.P.P.
Cumpra-se
o artº277ª, nº3, C.P.P. na pessoa do pai da falecida - fls.13
Assinatura
ilegível
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quarta-feira, 12 de dezembro de 2012
Sábado, dia 4 - dia fatídico!
O NASCIMENTO
O nascimento
Numa tarde fria de Inverno, pelas 16 horas,
do dia 21 de Janeiro de 1974, nasceu a Marta na Clínica de S.Gabriel em Lisboa.
Para vir ao mundo a Marta teve que lutar muito, pois tanto a gravidez como o
parto foram bastante conturbados. Sinais constantes de aborto, obrigaram-me a tratamentos
constantes e a um repouso que me deixavam muito nervosa e ansiosa. Com sete meses
de gravidez, voltei a ter sinal de aborto e por isso tive que ter mais repouso, para ver se o bébé
nascia na data prevista. Quando faltavam umas duas semanas, eu, o pai e a Rita
resolvemos ir de malas e bagagens para
Benfica, para casa da avó Amélia e do avô Vitalino para ficármos mais perto da
clínica.
Entrei na
Clínica dia 20 por volta das 10 horas da noite. Sentia grandes contracções e
estava na data prevista para o parto. O meu médico assistente era o director da
clínica e eu sentia-me apoiada, além disso, a Rita tinha também nascido ali e
apesar de ter nascido de cesariana, tudo tinha corrido bem.
O médico
convenceu-se de que como era o segundo filho, eu teria um parto normal, então,
devido a essa ideia do obstetra tudo se complicou. Comecei em trabalho de
parto, com muitas dores, mas a dilatação
não se fazia, e o sofrimento começou a ser muito grande.
De tempos a tempos, aparecia uma enfermeira e
eu pedia-lhe que chamassem o médico, pois sentia que não aguentava por mais
tempo, tantas dores. Passadas não sei quantas horas, para mim foram uma
eternidade, comecei a descontrolar-me e penso mesmo que perdi os sentidos.
Chamaram o médico e imediatamente fui para a sala de operações, onde me foi
feita uma cesariana. Nasceu uma menina perfeita, mas já com sinais visíveis de
sofrimento, por isso a bébé foi para a incubadora onde esteve cerca de doze
horas. Só no dia seguinte vi a minha bebé.
Partilhei o
quarto da Clínica com uma jovem parturiente inglesa que dera à luz um rapaz.
Ela disse-me que se tivesse tido uma rapariga
chamar-se-ia Marta. Fiquei a pensar no nome, que me soou bastante bonito
e imediatamente pensei que a minha bébé chamar-se-ia Marta.
Como gosto de
nomes pequenos, logo ficou decidido, que este seria o seu nome.
A Marta sempre
gostou muito do nome dela e às vezes, chamávamos-lhe de uma forma
carinhosa Martinha ou Martocas.
Foi uma bébé
muito saudável e bem disposta. Quando fez um ano de idade já andava e dizia
algumas palavras. O facto de conviver com crianças, um pouco mais velhas que
ela, do prédio, da rua e com os primos, desenvolveu-a e tornou-a muito
sociável.
AMarta tinha
três meses quando se deu a Revolução do 25 de Abril de 1974. A partir dessa
data, o nosso país sofreu grandes
modificações políticas e sociais.
Tanto eu como o
Zé éramos muito jovens e há muito que desejávamos mudanças no regime, por isso esperávamos que a
Revolução do Movimento das Forças Armadas viesse a transformar Portugal num país democrático, como
na verdade veio a acontecer, onde todos os cidadãos pudessem participar na
escolha dos governantes, onde não houvesse censura, nem polícia politica e
sobretudo que acabasse com a guerra no Ultramar, a qual parecia nunca mais
terminar.
Vivíamos intensamente todas essas
mudanças, necessárias para a libertação do
país de 40 anos de ditadura, mas
como tínhamos as crianças muito pequenas não nos era possível uma participação
mais activa. Foi com enorme e grande entusiasmo que participei na grande
manifestação do 1º de Maio de 1974, enquanto o Zé ficou com as crianças, vendo
pela televisão toda aquela enorme
multidão que saiu da Alameda Afonso
Henriques, subiu a Av. Almirante Reis para se dirigir ao estádio 1º de Maio,
onde os principais dirigentes políticos puderam usar da palavra. Tudo era novo
e apaixonante para quem nunca tinha podido expressar livremente as suas ideias.
UMA ESPÉCIE DE INTRODUÇÃO
Desde que a Marta partiu, que a ideia de escrever sobre a sua vida, não me tem abandonado.
O receio de não
ter a capacidade suficiente para transmitir aos que me irão ler, tudo aquilo
que tenho para contar, tem-me inibido levando-me a adiar e a atrasar o
projecto.
Durante estes
anos, a dúvida, de que o conteúdo deste livro não interessasse a quem o fosse
ler, surgia-me constantemente. Pensava: "
- Talvez interesse àqueles que com ela conviveram, que a amaram, que conheceram
o seu carácter, a sua sensibilidade, a sua disponibilidade para ajudar, a sua meiguice ... " animada por este pensamento, voltava a
escrever mais umas linhas.
O principal
objectivo deste livro será dar a ler aos que a conheceram ou àqueles que só
agora tomaram conhecimento da sua breve passagem por este nosso Planeta Terra,
as suas vivências, a sua sensibilidade, os seus anseios, as suas paixões, a sua
grande vontade de viver e de vencer os obstáculos que por vezes encontrou pelo
caminho.
Assim,
reconhecendo a minha pouca habilidade criativa para a escrita, peço aos que me
lerem, que desculpem as repetições, o exagero e até mesmo as incorrecções
linguísticas, pois tudo o que se segue foi escrito com o coração e a emoção,
sem ter em grande conta o "estilo literário".
Quando um filho
nasce procuramos guiá-lo com uma infinita paciência, mostrar-lhe os obstáculos,
acautelá-lo contra tudo o que queima, corta, envenena, asfixia, morde ou
arranha. Alertamo-lo para resistir à atracção do abismo, fazemos ver que a água
pode trair aqueles que confiam na sua doçura ou na sua vibração mágica; quando
mais tarde, estamos convencidos de que o preparámos contra todos os perigos, de
que o ensinámos a seguir o seu caminho na sociedade, de que tudo fizemos para o
tornar atenta à vida e respeitador de tudo o que vive, quando julgámos que lhe
transmitimos tudo o que de melhor há em nós, com a missão de, por sua vez,
legar todos esses conceitos aos seus descendentes, quando julgamos que tudo
está na "ordem estabelecida", bruscamente, somos confrontados com a
dura realidade de que nem sempre a "vida" é como nós a sonhamos ou
queremos.
Nada se cumpriu!
Nada está em ordem! Aquela filha que nós
tanto protegemos, franqueou sozinha as portas da morte, como se a nossa
vigilância de sempre, se tivesse partido de súbito, abrindo uma brecha à
fatalidade( Belline, 1980:13).
A morte da Marta
é a morte impossível, inaceitável!...
Alguém disse: "Os mortos são deste mundo durante
tanto tempo, quanto os guardamos na nossa memória ", sinto que esse
pensamento se ajusta a todos aqueles que como eu, perderam um filho.
Um filho perdido
que vive no nosso pensamento de todos os dias, como se o trouxéssemos de novo
dentro de nós, no aconchego da nossa barriga protectora, mas desta vez para não
mais o deixarmos vir ao mundo. Ele torna-se o nosso "fantasma"
interior, que nos acompanha, a quem pedimos conselhos, a quem pedimos
"força" nos momentos de fraqueza, com quem "dialogamos"
quando a saudade é insuportável.
A princípio,
pensamos que só a nós aconteceu tão grande fatalidade, estamos mesmo
"insensíveis" ao sofrimento dos outros; pois se nem sequer
conseguimos lidar com o nosso sofrimento, como lidar com o dos outros? Depois,
lentamente, muito lentamente, apercebemo-nos que há tantos pais a quem lhes
aconteceu a mesma tragédia e começamos a pensar na melhor maneira de vivermos
com esta brutal realidade.
Como e onde procurar
a melhor forma para podermos suportar
uma tão grande dor, sem perder as faculdades mentais e psíquicas, as
quais muitas vezes sentimos a oscilar e a fraquejar?
"- Tudo está reduzido a Nada!"
- é o meu pensamento mais constante!
Procurei na
escrita de um diário, um pouco do equilíbrio psíquico que necessitava.Durante
anos, todos os dias escrevi "uma carta" à Marta, onde lhe conto o meu
dia, as minhas tristezas, as minhas alegrias, dou-lhe a saber que as misérias
como a fome, a guerra, a maldade dos homens e as grandes injustiças sociais
continuam a existir neste Mundo e que tudo e nada mudou desde o dia 4 de
Fevereiro de 1995.
Ainda pensei
publicar os meus diários, mas estão demasiado íntimos e o objectivo desta
fotobiografia é dar a conhecer a Marta e não o meu sofrimento, devido à sua
partida.
Resolvi dividir
este livro, em várias partes e abordar nele os assuntos que sempre interessaram
à Marta, pois uma das suas características
era prestar uma enorme atenção às suas origens, ao modo como eu e o pai nos
conhecemos, falar dos amigos, em suma, ela adorava saber pormenores dos
pequenos nadas que formam as nossas vidas. Era uma grande conversadora e sempre
adorou partilhar com todos nós, os principais acontecimentos da sua vida.
Será que conseguirei através destas páginas dar
uma ideia da minha filha Marta? Conseguirei falar dela sem a trair? Conseguirei
fazer surgir no espírito e no coração
dos que me vão ler a imagem de uma jovem que se lhe assemelha?
Penso que o
posso esperar, pois a Marta era uma rapariga do seu tempo. Ficaria muito
feliz se muitos pais reconhecessem os traços dos filhos nesta jovem de 21 anos,
que soube aproveitar tudo de bom, que a vida lhe ofereceu.
Desde a sua
morte que a própria essência da minha vida mudou e as reacções da minha
sensibilidade para com o Mundo, que me rodeia, já não são as mesmas.
As provações que
tenho passado com a morte da Marta são
um calvário. A dor não aparece de uma só vez, mas em vagas sucessivas de dores,
que de cada vez são toda a dor, que se vão juntando e se vão acumulando e que
pesam cada vez mais no coração.
Querida mãe
Todos nós pensamos que hoje é um dia como
todos os outros mas para mim não o é, pois sinto algo de estranho quanto àquilo
que vou escrever, pois eu quero demonstrar-te o que sinto por ti, e a
importância desse sentimento em mim.
Eu tenho a sensação que se escrever aquilo
que sinto vou-me repetir muito, pois tudo aquilo que sinto é muito grandioso,
assim acho que vou resumir em duas palavras que representam muito:
Amo-te muito
Este é um dia em que todos pensamos o quanto
é bom e importante ter uma Mãe, mas para mim o importante é ter-te a Ti como
minha mãe.
Tenho que te escrever que tu és a mãe melhor
do mundo e eu , mesmo estando longe, sinto-o ainda mais.
Penso em ti todos os dias e gostaria de
poder dar-te um beijo todos os dias.O que eu sinto por ti é muito forte, mas eu sei que isso tu entendes.
Neste postal só não entendo porque fizeram
um boneco tão triste e com cara de mole, por isso vou pô-lo mais bem disposto
tal como tu.
Adeus minha querida mãe, que passes um dia
muito feliz e não fiques triste por não teres aí as tuas filhas, porque estamos mais próximo de
ti, do que aquilo que parece. Se fechares os olhos no Dia da Mãe vais sentir
que eu estou aí a dar-te um grande beijo e a dizer:
Obrigada minha
Querida Mãe
Amo-te muito
Desta tua filha
Marta Baleiro
Beja, Maio 1993
Foi minha intenção abrir a
fotobiografia da Marta com este cartão do Dia da Mãe, pois o seu texto
sintetiza o carácter e o temperamento da Marta. Estava sempre pronta a dar
afecto e amor e a sua meiguice e afectuosidade estão aqui bem presentes .
Desde muito pequena, que a Marta nos
demonstrava, em qualquer momento, o seu carinho, o seu amor e a sua ternura.
Gostava muito de se agarrar a nós, abraçando-nos e dando-nos beijos em
constantes manifestações de ternura .
Nem sempre nós, os adultos estávamos dispostos a receber tantas manifestações
de carinho e por vezes afastávamo-la e
"rejeitávamos" esses abraços e beijos, pois nem sempre estes eram
dados nos momentos mais oportunos.
Sempre foi muito
sensível e muito meiga e adorava
sentar-se junto de nós para que lhe fizéssemos "festinhas" e
lhe déssemos beijinhos. Ela e a Rita sentavam-se no sofá grande da sala muito
encostadas uma à outra, enquanto viam televisão ou ouviam música, pois sempre
se sentiram muito bem, próximas e juntas. Levavam horas a mexer nos cabelos uma
da outra. Estas manifestações de carinho revelam bem o grande amor e a grande
ternura que sempre ligou as duas irmãs.
A sua grande
sensibilidade e a sua meiguice originavam-lhe, por vezes, grandes decepções e
dissabores, pois uma palavra mais agressiva ou um gesto mais brusco da nossa
parte, eram suficientes para lhe provocarem um "grande desgosto" e,
algumas vezes, tinha grandes manifestações de choro e de tristeza deitada em
cima da cama, onde se refugiava..
A adolescência
da Marta, devido ao seu carácter sensível e meigo, foi vivida com algumas
manifestações de tristeza e, às vezes, eu como mãe, sentia-me bastante confusa
e impotente para poder resolver tantos conflitos interiores e tantos
"desgostos" de adolescente. À hora de deitar, passávamos as duas,
longos momentos de conversa para
tentarmos "solucionar" esses "problemas" que tanto
perturbavam a Marta. Sempre houve entre mim e a Marta uma grande ligação
afectiva e apesar de muitas vezes nos aborrecermos e nos chocarmos,dando
ocasião a algumas "discussões"
e a pequenos conflitos, estes eram facilmente resolvidos, pois tanto a
Marta como eu, nunca conseguimos arrastar por muito tempo uma situação
desagradável.
Nas vésperas de
Natal de 1984, tinha a Marta 10 anos, tivemos uma "briga", já não sei precisar qual o motivo, mas sei que
nessa noite, escrevi no meu diário o
seguinte:
Natal de 1984
Querida
Marta
Hoje fui má! Dentro de mim há um bichinho
que me faz má! Sem querer ofendi-te! Sem me aperceber que te estava a magoar,
fui dizendo palavras que te feriram e magoaram, depois não tive coragem
suficiente para dizer que tinha errado. Não fui capaz de te dizer que nós
mães também erramos e que somos
"duras" sem razão.
Tinhas um cartão para me ofereceres, onde
tinhas escrito aquilo que o teu coração sincero tem lá dentro; zangada foste
rasgá-lo!
Eu não merecia as tuas palavras lindas,
lindas e belas, porque eu fui má!
Quando fui ao teu quarto, vi bocadinhos de papel, todos amarrotados,
todos rasgados como estava o teu coração de menina boa e meiga. Juntei
bocadinho a bocadinho e encontrei a melhor prenda de Natal, que até hoje
tivera...
A Marta nunca
aceitou que "brincassem" com ela, e facilmente passava da boa
disposição a amuada quando algumas palavras ditas por nós não lhe agradavam;
nesses momentos eu chamava-lhe "Baleiruça" o que ainda mais agravava
a situação, pois ela sabia que este termo se referia ao feitio sério e rigoroso
do lado paterno, que raramente aceitam ou admitem uma "brincadeira".
A Marta teve um
desenvolvimento físico e mental muito precoce. A passagem da infância para a
adolescência foi feita muito rapidamente, o que originou que a Marta
"sofresse" todos os estádios de desenvolvimento da adolescência duma
forma bastante abrupta dando origem a grandes conflitos interiores, pois ela
sentia-se já uma adolescente e nós ainda não estávamos mentalizados para essa
mudança.
O seu corpo
desenvolveu-se muito, bem como a sua postura perante a vida e perante os
outros. Sempre foi muito responsável e conhecia bem os limites para as suas
exigências.
Às vezes, quando
eu não a deixava ir onde me pedia, chorava e dizia que esperava ansiosamente os
18 anos, pois com essa idade, ela poderia fazer tudo o que quisesse.
O facto da Marta
ter passado por todas estas transformações durante a adolescência duma maneira
saudável, fizeram dela uma jovem adulta, consciente das suas responsabilidades
familiares, sociais e profissionais (finalizar o seu curso, o mais rapidamente
possível!).
Frequentava o 1º ano da Escola Preparatória de Massamá
quando pela primeira vez foi menstruada. Sempre tivemos uma relação muito
aberta e por isso quando chegou a casa disse-me o que lhe tinha acontecido.
Nesse dia, 15 de Maio de 1984, escrevi no meu diário, este texto:
Marta
Chegaste a casa com um olhar diferente.
Trazias os olhos brilhantes de expectativa e ao mesmo tempo de medo!
Hoje desabrochaste para a adolescência.
Como uma flor na Primavera que desabrocha,
tu também te tornaste uma "mulherzinha".
Hoje, no recreio da escola, tinhas sentido
algo de anormal; um líquido quente que te sujava as cuecas!
Era a tua primeira menstruação! Com os teus
10 anos, começas a sentir o prazer de ser mulher!
Contudo és ainda uma criança!... Meiga,
rebelde, exaltada, triste, alegre!
Eu senti nos meus 35 anos, como o tempo
passa! Agora já tenho duas mulherzinhas em casa. Agora vais tu, a mais
pequenina, começar a despontar e a abrir para a vida.
Sem me aperceber, vejo que as minhas filhas
deixam de ser "as minhas
meninas" para se tornarem "as minhas mulherzinhas".
Como
ainda está perto o tempo em que eu te mudava a fralda! Como está ainda recente
na minha memória a alegria que sentias quando te vias sem fraldas e gatinhavas
por cima da cama, dando gargalhadas de alegria e de prazer!
Hoje é um dia especial para ti e para mim. A
Primavera trouxe-te o presente de seres mulher.
quarta-feira, 13 de abril de 2011
UMA PARAGEM... PARA RETOMAR O FÔLEGO...
Olá meus queridos amigos, leitores e seguidores deste meu espaço, dedicado à Marta...
De propósito, (ou não?) não arranjei tempo para vir escrever aqui no blog... ando cansada, sem força anímica para passar para o blog o que me vai na cabeça...
Como eu tenho pensado nas amigas da Marta, na Clara, na Aires, na Patrícia, na Olga, nos amigos da Paiã e não só, que me demonstraram tanto afecto e me deixaram aqui palavras tão bonitas...
Mas, inconscientemente, sem me aperceber bem como... não voltei a escrever aqui... o cansaço físico é grande... e quando chego a casa, por volta das 22 horas, depois das aulas, não arranjo força para vir para o computador...
Fui fazer análises, e fiquei a saber a razão deste cansaço extremo. Estou com uma anemia, e os valores da hemoglobina são preocupantes... hoje fiz uma transfusão de ferro, e não sei se é da transfusão ou não, apeteceu-me vir dar-lhes um OLÁ, e dar a todos aqueles que me andavam a seguir, esta explicação... prometo que daqui a uns dias, vou recomeçar estes meus posts, que me dão muito prazer em escrever...
Até breve...
Um grande, muito grande xi-coração a todos aqueles que não esqueceram a Marta, e que ainda a recordam como ela era na verdade: meiga, boa, compreensiva, tolerante, insatisfeita, revoltada com as injustiças, zangada com aqiueles que a faziam sofrer, mas que rápidamente, ela esquecia esse dissabor...
Zuzu
De propósito, (ou não?) não arranjei tempo para vir escrever aqui no blog... ando cansada, sem força anímica para passar para o blog o que me vai na cabeça...
Como eu tenho pensado nas amigas da Marta, na Clara, na Aires, na Patrícia, na Olga, nos amigos da Paiã e não só, que me demonstraram tanto afecto e me deixaram aqui palavras tão bonitas...
Mas, inconscientemente, sem me aperceber bem como... não voltei a escrever aqui... o cansaço físico é grande... e quando chego a casa, por volta das 22 horas, depois das aulas, não arranjo força para vir para o computador...
Fui fazer análises, e fiquei a saber a razão deste cansaço extremo. Estou com uma anemia, e os valores da hemoglobina são preocupantes... hoje fiz uma transfusão de ferro, e não sei se é da transfusão ou não, apeteceu-me vir dar-lhes um OLÁ, e dar a todos aqueles que me andavam a seguir, esta explicação... prometo que daqui a uns dias, vou recomeçar estes meus posts, que me dão muito prazer em escrever...
Até breve...
Um grande, muito grande xi-coração a todos aqueles que não esqueceram a Marta, e que ainda a recordam como ela era na verdade: meiga, boa, compreensiva, tolerante, insatisfeita, revoltada com as injustiças, zangada com aqiueles que a faziam sofrer, mas que rápidamente, ela esquecia esse dissabor...
Zuzu
segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011
O CIRCO
Todos os anos, pelo Natal, o banco oferecia um espectáculo de circo no Coliseu, para os filhos dos empregados.
O Zé não gostava de ir, então eu lá ia com a Rita e com a Marta.
Um ano, ficámos nos camarotes e a Marta meteu um pé por dentro das grades do camarote. Estavam já as luzes apagadas e o espectáculo para começar, quando ela me disse que tinha o pé entalado no ferro forjado do camarote. Tentei tirar-lho, mas não consegui. Ela já estava um pouco assustada com a situação. Então, descalcei-lhe a bota, com muito cuidado para que não caísse cá em baixo, e só depois da bota descalçada é que a Marta conseguiu tirar o pé.
Foi um alívio enorme.
Vimos o resto do espectáculo já bem dispostas.
Elas adoravam ir ao circo e por isso esse dia era sempre um dia de grande animação. O banco oferecia a cada criança um saco com rebuçados, sumos, bolachas e outras gulosiemas que elas comiam no decorrer do espectáculo.
O Zé não gostava de ir, então eu lá ia com a Rita e com a Marta.
Um ano, ficámos nos camarotes e a Marta meteu um pé por dentro das grades do camarote. Estavam já as luzes apagadas e o espectáculo para começar, quando ela me disse que tinha o pé entalado no ferro forjado do camarote. Tentei tirar-lho, mas não consegui. Ela já estava um pouco assustada com a situação. Então, descalcei-lhe a bota, com muito cuidado para que não caísse cá em baixo, e só depois da bota descalçada é que a Marta conseguiu tirar o pé.
Foi um alívio enorme.
Vimos o resto do espectáculo já bem dispostas.
Elas adoravam ir ao circo e por isso esse dia era sempre um dia de grande animação. O banco oferecia a cada criança um saco com rebuçados, sumos, bolachas e outras gulosiemas que elas comiam no decorrer do espectáculo.
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