Desde que a Marta partiu, que a ideia de escrever sobre a sua vida, não me tem abandonado.
O receio de não
ter a capacidade suficiente para transmitir aos que me irão ler, tudo aquilo
que tenho para contar, tem-me inibido levando-me a adiar e a atrasar o
projecto.
Durante estes
anos, a dúvida, de que o conteúdo deste livro não interessasse a quem o fosse
ler, surgia-me constantemente. Pensava: "
- Talvez interesse àqueles que com ela conviveram, que a amaram, que conheceram
o seu carácter, a sua sensibilidade, a sua disponibilidade para ajudar, a sua meiguice ... " animada por este pensamento, voltava a
escrever mais umas linhas.
O principal
objectivo deste livro será dar a ler aos que a conheceram ou àqueles que só
agora tomaram conhecimento da sua breve passagem por este nosso Planeta Terra,
as suas vivências, a sua sensibilidade, os seus anseios, as suas paixões, a sua
grande vontade de viver e de vencer os obstáculos que por vezes encontrou pelo
caminho.
Assim,
reconhecendo a minha pouca habilidade criativa para a escrita, peço aos que me
lerem, que desculpem as repetições, o exagero e até mesmo as incorrecções
linguísticas, pois tudo o que se segue foi escrito com o coração e a emoção,
sem ter em grande conta o "estilo literário".
Quando um filho
nasce procuramos guiá-lo com uma infinita paciência, mostrar-lhe os obstáculos,
acautelá-lo contra tudo o que queima, corta, envenena, asfixia, morde ou
arranha. Alertamo-lo para resistir à atracção do abismo, fazemos ver que a água
pode trair aqueles que confiam na sua doçura ou na sua vibração mágica; quando
mais tarde, estamos convencidos de que o preparámos contra todos os perigos, de
que o ensinámos a seguir o seu caminho na sociedade, de que tudo fizemos para o
tornar atenta à vida e respeitador de tudo o que vive, quando julgámos que lhe
transmitimos tudo o que de melhor há em nós, com a missão de, por sua vez,
legar todos esses conceitos aos seus descendentes, quando julgamos que tudo
está na "ordem estabelecida", bruscamente, somos confrontados com a
dura realidade de que nem sempre a "vida" é como nós a sonhamos ou
queremos.
Nada se cumpriu!
Nada está em ordem! Aquela filha que nós
tanto protegemos, franqueou sozinha as portas da morte, como se a nossa
vigilância de sempre, se tivesse partido de súbito, abrindo uma brecha à
fatalidade( Belline, 1980:13).
A morte da Marta
é a morte impossível, inaceitável!...
Alguém disse: "Os mortos são deste mundo durante
tanto tempo, quanto os guardamos na nossa memória ", sinto que esse
pensamento se ajusta a todos aqueles que como eu, perderam um filho.
Um filho perdido
que vive no nosso pensamento de todos os dias, como se o trouxéssemos de novo
dentro de nós, no aconchego da nossa barriga protectora, mas desta vez para não
mais o deixarmos vir ao mundo. Ele torna-se o nosso "fantasma"
interior, que nos acompanha, a quem pedimos conselhos, a quem pedimos
"força" nos momentos de fraqueza, com quem "dialogamos"
quando a saudade é insuportável.
A princípio,
pensamos que só a nós aconteceu tão grande fatalidade, estamos mesmo
"insensíveis" ao sofrimento dos outros; pois se nem sequer
conseguimos lidar com o nosso sofrimento, como lidar com o dos outros? Depois,
lentamente, muito lentamente, apercebemo-nos que há tantos pais a quem lhes
aconteceu a mesma tragédia e começamos a pensar na melhor maneira de vivermos
com esta brutal realidade.
Como e onde procurar
a melhor forma para podermos suportar
uma tão grande dor, sem perder as faculdades mentais e psíquicas, as
quais muitas vezes sentimos a oscilar e a fraquejar?
"- Tudo está reduzido a Nada!"
- é o meu pensamento mais constante!
Procurei na
escrita de um diário, um pouco do equilíbrio psíquico que necessitava.Durante
anos, todos os dias escrevi "uma carta" à Marta, onde lhe conto o meu
dia, as minhas tristezas, as minhas alegrias, dou-lhe a saber que as misérias
como a fome, a guerra, a maldade dos homens e as grandes injustiças sociais
continuam a existir neste Mundo e que tudo e nada mudou desde o dia 4 de
Fevereiro de 1995.
Ainda pensei
publicar os meus diários, mas estão demasiado íntimos e o objectivo desta
fotobiografia é dar a conhecer a Marta e não o meu sofrimento, devido à sua
partida.
Resolvi dividir
este livro, em várias partes e abordar nele os assuntos que sempre interessaram
à Marta, pois uma das suas características
era prestar uma enorme atenção às suas origens, ao modo como eu e o pai nos
conhecemos, falar dos amigos, em suma, ela adorava saber pormenores dos
pequenos nadas que formam as nossas vidas. Era uma grande conversadora e sempre
adorou partilhar com todos nós, os principais acontecimentos da sua vida.
Será que conseguirei através destas páginas dar
uma ideia da minha filha Marta? Conseguirei falar dela sem a trair? Conseguirei
fazer surgir no espírito e no coração
dos que me vão ler a imagem de uma jovem que se lhe assemelha?
Penso que o
posso esperar, pois a Marta era uma rapariga do seu tempo. Ficaria muito
feliz se muitos pais reconhecessem os traços dos filhos nesta jovem de 21 anos,
que soube aproveitar tudo de bom, que a vida lhe ofereceu.
Desde a sua
morte que a própria essência da minha vida mudou e as reacções da minha
sensibilidade para com o Mundo, que me rodeia, já não são as mesmas.
As provações que
tenho passado com a morte da Marta são
um calvário. A dor não aparece de uma só vez, mas em vagas sucessivas de dores,
que de cada vez são toda a dor, que se vão juntando e se vão acumulando e que
pesam cada vez mais no coração.
Querida mãe
Todos nós pensamos que hoje é um dia como
todos os outros mas para mim não o é, pois sinto algo de estranho quanto àquilo
que vou escrever, pois eu quero demonstrar-te o que sinto por ti, e a
importância desse sentimento em mim.
Eu tenho a sensação que se escrever aquilo
que sinto vou-me repetir muito, pois tudo aquilo que sinto é muito grandioso,
assim acho que vou resumir em duas palavras que representam muito:
Amo-te muito
Este é um dia em que todos pensamos o quanto
é bom e importante ter uma Mãe, mas para mim o importante é ter-te a Ti como
minha mãe.
Tenho que te escrever que tu és a mãe melhor
do mundo e eu , mesmo estando longe, sinto-o ainda mais.
Penso em ti todos os dias e gostaria de
poder dar-te um beijo todos os dias.O que eu sinto por ti é muito forte, mas eu sei que isso tu entendes.
Neste postal só não entendo porque fizeram
um boneco tão triste e com cara de mole, por isso vou pô-lo mais bem disposto
tal como tu.
Adeus minha querida mãe, que passes um dia
muito feliz e não fiques triste por não teres aí as tuas filhas, porque estamos mais próximo de
ti, do que aquilo que parece. Se fechares os olhos no Dia da Mãe vais sentir
que eu estou aí a dar-te um grande beijo e a dizer:
Obrigada minha
Querida Mãe
Amo-te muito
Desta tua filha
Marta Baleiro
Beja, Maio 1993
Foi minha intenção abrir a
fotobiografia da Marta com este cartão do Dia da Mãe, pois o seu texto
sintetiza o carácter e o temperamento da Marta. Estava sempre pronta a dar
afecto e amor e a sua meiguice e afectuosidade estão aqui bem presentes .
Desde muito pequena, que a Marta nos
demonstrava, em qualquer momento, o seu carinho, o seu amor e a sua ternura.
Gostava muito de se agarrar a nós, abraçando-nos e dando-nos beijos em
constantes manifestações de ternura .
Nem sempre nós, os adultos estávamos dispostos a receber tantas manifestações
de carinho e por vezes afastávamo-la e
"rejeitávamos" esses abraços e beijos, pois nem sempre estes eram
dados nos momentos mais oportunos.
Sempre foi muito
sensível e muito meiga e adorava
sentar-se junto de nós para que lhe fizéssemos "festinhas" e
lhe déssemos beijinhos. Ela e a Rita sentavam-se no sofá grande da sala muito
encostadas uma à outra, enquanto viam televisão ou ouviam música, pois sempre
se sentiram muito bem, próximas e juntas. Levavam horas a mexer nos cabelos uma
da outra. Estas manifestações de carinho revelam bem o grande amor e a grande
ternura que sempre ligou as duas irmãs.
A sua grande
sensibilidade e a sua meiguice originavam-lhe, por vezes, grandes decepções e
dissabores, pois uma palavra mais agressiva ou um gesto mais brusco da nossa
parte, eram suficientes para lhe provocarem um "grande desgosto" e,
algumas vezes, tinha grandes manifestações de choro e de tristeza deitada em
cima da cama, onde se refugiava..
A adolescência
da Marta, devido ao seu carácter sensível e meigo, foi vivida com algumas
manifestações de tristeza e, às vezes, eu como mãe, sentia-me bastante confusa
e impotente para poder resolver tantos conflitos interiores e tantos
"desgostos" de adolescente. À hora de deitar, passávamos as duas,
longos momentos de conversa para
tentarmos "solucionar" esses "problemas" que tanto
perturbavam a Marta. Sempre houve entre mim e a Marta uma grande ligação
afectiva e apesar de muitas vezes nos aborrecermos e nos chocarmos,dando
ocasião a algumas "discussões"
e a pequenos conflitos, estes eram facilmente resolvidos, pois tanto a
Marta como eu, nunca conseguimos arrastar por muito tempo uma situação
desagradável.
Nas vésperas de
Natal de 1984, tinha a Marta 10 anos, tivemos uma "briga", já não sei precisar qual o motivo, mas sei que
nessa noite, escrevi no meu diário o
seguinte:
Natal de 1984
Querida
Marta
Hoje fui má! Dentro de mim há um bichinho
que me faz má! Sem querer ofendi-te! Sem me aperceber que te estava a magoar,
fui dizendo palavras que te feriram e magoaram, depois não tive coragem
suficiente para dizer que tinha errado. Não fui capaz de te dizer que nós
mães também erramos e que somos
"duras" sem razão.
Tinhas um cartão para me ofereceres, onde
tinhas escrito aquilo que o teu coração sincero tem lá dentro; zangada foste
rasgá-lo!
Eu não merecia as tuas palavras lindas,
lindas e belas, porque eu fui má!
Quando fui ao teu quarto, vi bocadinhos de papel, todos amarrotados,
todos rasgados como estava o teu coração de menina boa e meiga. Juntei
bocadinho a bocadinho e encontrei a melhor prenda de Natal, que até hoje
tivera...
A Marta nunca
aceitou que "brincassem" com ela, e facilmente passava da boa
disposição a amuada quando algumas palavras ditas por nós não lhe agradavam;
nesses momentos eu chamava-lhe "Baleiruça" o que ainda mais agravava
a situação, pois ela sabia que este termo se referia ao feitio sério e rigoroso
do lado paterno, que raramente aceitam ou admitem uma "brincadeira".
A Marta teve um
desenvolvimento físico e mental muito precoce. A passagem da infância para a
adolescência foi feita muito rapidamente, o que originou que a Marta
"sofresse" todos os estádios de desenvolvimento da adolescência duma
forma bastante abrupta dando origem a grandes conflitos interiores, pois ela
sentia-se já uma adolescente e nós ainda não estávamos mentalizados para essa
mudança.
O seu corpo
desenvolveu-se muito, bem como a sua postura perante a vida e perante os
outros. Sempre foi muito responsável e conhecia bem os limites para as suas
exigências.
Às vezes, quando
eu não a deixava ir onde me pedia, chorava e dizia que esperava ansiosamente os
18 anos, pois com essa idade, ela poderia fazer tudo o que quisesse.
O facto da Marta
ter passado por todas estas transformações durante a adolescência duma maneira
saudável, fizeram dela uma jovem adulta, consciente das suas responsabilidades
familiares, sociais e profissionais (finalizar o seu curso, o mais rapidamente
possível!).
Frequentava o 1º ano da Escola Preparatória de Massamá
quando pela primeira vez foi menstruada. Sempre tivemos uma relação muito
aberta e por isso quando chegou a casa disse-me o que lhe tinha acontecido.
Nesse dia, 15 de Maio de 1984, escrevi no meu diário, este texto:
Marta
Chegaste a casa com um olhar diferente.
Trazias os olhos brilhantes de expectativa e ao mesmo tempo de medo!
Hoje desabrochaste para a adolescência.
Como uma flor na Primavera que desabrocha,
tu também te tornaste uma "mulherzinha".
Hoje, no recreio da escola, tinhas sentido
algo de anormal; um líquido quente que te sujava as cuecas!
Era a tua primeira menstruação! Com os teus
10 anos, começas a sentir o prazer de ser mulher!
Contudo és ainda uma criança!... Meiga,
rebelde, exaltada, triste, alegre!
Eu senti nos meus 35 anos, como o tempo
passa! Agora já tenho duas mulherzinhas em casa. Agora vais tu, a mais
pequenina, começar a despontar e a abrir para a vida.
Sem me aperceber, vejo que as minhas filhas
deixam de ser "as minhas
meninas" para se tornarem "as minhas mulherzinhas".
Como
ainda está perto o tempo em que eu te mudava a fralda! Como está ainda recente
na minha memória a alegria que sentias quando te vias sem fraldas e gatinhavas
por cima da cama, dando gargalhadas de alegria e de prazer!
Hoje é um dia especial para ti e para mim. A
Primavera trouxe-te o presente de seres mulher.
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