MARTA

MARTA
O ADEUS PRECOCE DA MINHA ESTRELA MAIOR

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

UMA ESPÉCIE DE INTRODUÇÃO


Desde que a Marta partiu, que a ideia de escrever sobre a sua vida, não me tem abandonado.

O receio de não ter a capacidade suficiente para transmitir aos que me irão ler, tudo aquilo que tenho para contar, tem-me inibido levando-me a adiar e a atrasar o projecto. 
Durante estes anos, a dúvida, de que o conteúdo deste livro não interessasse a quem o fosse ler, surgia-me constantemente. Pensava: " - Talvez interesse àqueles que com ela conviveram, que a amaram, que conheceram o seu carácter, a sua sensibilidade, a sua disponibilidade para ajudar, a sua meiguice ... "  animada por este pensamento, voltava a escrever mais umas linhas.
O principal objectivo deste livro será dar a ler aos que a conheceram ou àqueles que só agora tomaram conhecimento da sua breve passagem por este nosso Planeta Terra, as suas vivências, a sua sensibilidade, os seus anseios, as suas paixões, a sua grande vontade de viver e de vencer os obstáculos que por vezes encontrou pelo caminho.
Assim, reconhecendo a minha pouca habilidade criativa para a escrita, peço aos que me lerem, que desculpem as repetições, o exagero e até mesmo as incorrecções linguísticas, pois tudo o que se segue foi escrito com o coração e a emoção, sem ter em grande conta o "estilo literário".
Quando um filho nasce procuramos guiá-lo com uma infinita paciência, mostrar-lhe os obstáculos, acautelá-lo contra tudo o que queima, corta, envenena, asfixia, morde ou arranha. Alertamo-lo para resistir à atracção do abismo, fazemos ver que a água pode trair aqueles que confiam na sua doçura ou na sua vibração mágica; quando mais tarde, estamos convencidos de que o preparámos contra todos os perigos, de que o ensinámos a seguir o seu caminho na sociedade, de que tudo fizemos para o tornar atenta à vida e respeitador de tudo o que vive, quando julgámos que lhe transmitimos tudo o que de melhor há em nós, com a missão de, por sua vez, legar todos esses conceitos aos seus descendentes, quando julgamos que tudo está na "ordem estabelecida", bruscamente, somos confrontados com a dura realidade de que nem sempre a "vida" é como nós a sonhamos ou queremos.
Nada se cumpriu! Nada está em ordem!  Aquela filha que nós tanto protegemos, franqueou sozinha as portas da morte, como se a nossa vigilância de sempre, se tivesse partido de súbito, abrindo uma brecha à fatalidade( Belline, 1980:13).
A morte da Marta é a morte impossível, inaceitável!...
Alguém disse: "Os mortos são deste mundo durante tanto tempo, quanto os guardamos na nossa memória ", sinto que esse pensamento se ajusta a todos aqueles que como eu, perderam um filho.
Um filho perdido que vive no nosso pensamento de todos os dias, como se o trouxéssemos de novo dentro de nós, no aconchego da nossa barriga protectora, mas desta vez para não mais o deixarmos vir ao mundo. Ele torna-se o nosso "fantasma" interior, que nos acompanha, a quem pedimos conselhos, a quem pedimos "força" nos momentos de fraqueza, com quem "dialogamos" quando a saudade é insuportável.
A princípio, pensamos que só a nós aconteceu tão grande fatalidade, estamos mesmo "insensíveis" ao sofrimento dos outros; pois se nem sequer conseguimos lidar com o nosso sofrimento, como lidar com o dos outros? Depois, lentamente, muito lentamente, apercebemo-nos que há tantos pais a quem lhes aconteceu a mesma tragédia e começamos a pensar na melhor maneira de vivermos com esta brutal realidade.
Como e onde procurar a melhor forma para podermos suportar  uma tão grande dor, sem perder as faculdades mentais e psíquicas, as quais muitas vezes sentimos a oscilar e a fraquejar?
"- Tudo está reduzido a Nada!" - é o meu pensamento mais constante!
Procurei na escrita de um diário, um pouco do equilíbrio psíquico que necessitava.Durante anos, todos os dias escrevi "uma carta" à Marta, onde lhe conto o meu dia, as minhas tristezas, as minhas alegrias, dou-lhe a saber que as misérias como a fome, a guerra, a maldade dos homens e as grandes injustiças sociais continuam a existir neste Mundo e que tudo e nada mudou desde o dia 4 de Fevereiro de 1995.
Ainda pensei publicar os meus diários, mas estão demasiado íntimos e o objectivo desta fotobiografia é dar a conhecer a Marta e não o meu sofrimento, devido à sua partida.
Resolvi dividir este livro, em várias partes e abordar nele os assuntos que sempre interessaram à Marta, pois uma das suas características  era prestar uma enorme atenção às suas origens, ao modo como eu e o pai nos conhecemos, falar dos amigos, em suma, ela adorava saber pormenores dos pequenos nadas que formam as nossas vidas. Era uma grande conversadora e sempre adorou partilhar com todos nós, os principais acontecimentos da sua vida.
Será  que conseguirei através destas páginas dar uma ideia da minha filha Marta? Conseguirei falar dela sem a trair? Conseguirei fazer surgir no espírito e no coração  dos que me vão ler a imagem de uma jovem que se lhe assemelha?
Penso que o posso esperar, pois a Marta era uma rapariga do seu tempo. Ficaria muito feliz  se muitos pais reconhecessem  os traços dos filhos nesta jovem de 21 anos, que soube aproveitar tudo de bom, que a vida lhe ofereceu.
Desde a sua morte que a própria essência da minha vida mudou e as reacções da minha sensibilidade para com o Mundo, que me rodeia, já não são as mesmas.
As provações que tenho passado  com a morte da Marta são um calvário. A dor não aparece de uma só vez, mas em vagas sucessivas de dores, que de cada vez são toda a dor, que se vão juntando e se vão acumulando e que pesam cada vez mais no coração.

Querida mãe

Todos nós pensamos que hoje é um dia como todos os outros mas para mim não o é, pois sinto algo de estranho quanto àquilo que vou escrever, pois eu quero  demonstrar-te o que sinto por ti, e a importância desse sentimento em mim.
Eu tenho a sensação que se escrever aquilo que sinto vou-me repetir muito, pois tudo aquilo que sinto é muito grandioso, assim acho que vou resumir em duas palavras que representam muito:
                                         Amo-te muito
Este é um dia em que todos pensamos o quanto é bom e importante ter uma Mãe, mas para mim o importante é ter-te a Ti como minha mãe.
Tenho que te escrever que tu és a mãe melhor do mundo e eu , mesmo estando longe, sinto-o ainda mais.
Penso em ti todos os dias e gostaria de poder dar-te um beijo todos os dias.O que eu sinto por ti é muito  forte, mas eu sei que isso tu entendes.
Neste postal só não entendo porque fizeram um boneco tão triste e com cara de mole, por isso vou pô-lo mais bem disposto tal como tu.
Adeus minha querida mãe, que passes um dia muito feliz e não fiques triste por não teres aí as  tuas filhas, porque estamos mais próximo de ti, do que aquilo que parece. Se fechares os olhos no Dia da Mãe vais sentir que eu estou aí a dar-te um grande beijo e a dizer:
                                 Obrigada minha Querida Mãe
                                                              Amo-te muito
                                                             Desta tua filha
                                                                 Marta Baleiro
     Beja, Maio 1993

            Foi minha intenção abrir a fotobiografia da Marta com este cartão do Dia da Mãe, pois o seu texto sintetiza o carácter e o temperamento da Marta. Estava sempre pronta a dar afecto e amor e a sua meiguice e afectuosidade estão aqui bem presentes .
            Desde muito pequena, que a Marta nos demonstrava, em qualquer momento, o seu carinho, o seu amor e a sua ternura. Gostava muito de se agarrar a nós, abraçando-nos e dando-nos beijos em constantes  manifestações de ternura . Nem sempre nós, os adultos estávamos dispostos a receber tantas manifestações de carinho e por vezes afastávamo-la  e "rejeitávamos" esses abraços e beijos, pois nem sempre estes eram dados nos momentos mais oportunos.
Sempre foi muito sensível e muito meiga e adorava  sentar-se junto de nós para que lhe fizéssemos "festinhas" e lhe déssemos beijinhos. Ela e a Rita sentavam-se no sofá grande da sala muito encostadas uma à outra, enquanto viam televisão ou ouviam música, pois sempre se sentiram muito bem, próximas e juntas. Levavam horas a mexer nos cabelos uma da outra. Estas manifestações de carinho revelam bem o grande amor e a grande ternura que sempre ligou as duas irmãs.
A sua grande sensibilidade e a sua meiguice originavam-lhe, por vezes, grandes decepções e dissabores, pois uma palavra mais agressiva ou um gesto mais brusco da nossa parte, eram suficientes para lhe provocarem um "grande desgosto" e, algumas vezes, tinha grandes manifestações de choro e de tristeza deitada em cima da cama, onde se refugiava..
A adolescência da Marta, devido ao seu carácter sensível e meigo, foi vivida com algumas manifestações de tristeza e, às vezes, eu como mãe, sentia-me bastante confusa e impotente para poder resolver tantos conflitos interiores e tantos "desgostos" de adolescente. À hora de deitar, passávamos as duas, longos momentos de conversa  para tentarmos "solucionar" esses "problemas" que tanto perturbavam a Marta. Sempre houve entre mim e a Marta uma grande ligação afectiva e apesar de muitas vezes nos aborrecermos e nos chocarmos,dando ocasião a algumas "discussões"  e a pequenos conflitos, estes eram facilmente resolvidos, pois tanto a Marta como eu, nunca conseguimos arrastar por muito tempo uma situação desagradável.
Nas vésperas de Natal de 1984, tinha a Marta 10 anos, tivemos uma "briga", já   não sei precisar qual o motivo, mas sei que nessa  noite, escrevi no meu diário o seguinte:
                                
                    Natal de 1984
            Querida Marta
Hoje fui má! Dentro de mim há um bichinho que me faz má! Sem querer ofendi-te! Sem me aperceber que te estava a magoar, fui dizendo palavras que te feriram e magoaram, depois não tive coragem suficiente para dizer que tinha errado. Não fui capaz de te dizer que nós mães  também erramos e que somos "duras" sem razão.
Tinhas um cartão para me ofereceres, onde tinhas escrito aquilo que o teu coração sincero tem lá dentro; zangada foste rasgá-lo!
Eu não merecia as tuas palavras lindas, lindas e belas, porque eu fui má!
Quando fui ao teu quarto,  vi bocadinhos de papel, todos amarrotados, todos rasgados como estava o teu coração de menina boa e meiga. Juntei bocadinho a bocadinho e encontrei a melhor prenda de Natal, que até hoje tivera...


A Marta nunca aceitou que "brincassem" com ela, e facilmente passava da boa disposição a amuada quando algumas palavras ditas por nós não lhe agradavam; nesses momentos eu chamava-lhe "Baleiruça" o que ainda mais agravava a situação, pois ela sabia que este termo se referia ao feitio sério e rigoroso do lado paterno, que raramente aceitam ou admitem uma "brincadeira".
A Marta teve um desenvolvimento físico e mental muito precoce. A passagem da infância para a adolescência foi feita muito rapidamente, o que originou que a Marta "sofresse" todos os estádios de desenvolvimento da adolescência duma forma bastante abrupta dando origem a grandes conflitos interiores, pois ela sentia-se já uma adolescente e nós ainda não estávamos mentalizados para essa mudança.
O seu corpo desenvolveu-se muito, bem como a sua postura perante a vida e perante os outros. Sempre foi muito responsável e conhecia bem os limites para as suas exigências.
Às vezes, quando eu não a deixava ir onde me pedia, chorava e dizia que esperava ansiosamente os 18 anos, pois com essa idade, ela poderia fazer tudo o que quisesse.
O facto da Marta ter passado por todas estas transformações durante a adolescência duma maneira saudável, fizeram dela uma jovem adulta, consciente das suas responsabilidades familiares, sociais e profissionais (finalizar o seu curso, o mais rapidamente possível!).
Frequentava  o 1º ano da Escola Preparatória de Massamá quando pela primeira vez foi menstruada. Sempre tivemos uma relação muito aberta e por isso quando chegou a casa disse-me o que lhe tinha acontecido. Nesse dia, 15 de Maio de 1984, escrevi no meu diário, este texto:

                                         Marta

Chegaste a casa com um olhar diferente. Trazias os olhos brilhantes de expectativa e ao mesmo tempo de medo!
Hoje desabrochaste para a adolescência.
Como uma flor na Primavera que desabrocha, tu também te tornaste uma "mulherzinha".
Hoje, no recreio da escola, tinhas sentido algo de anormal; um líquido quente que te sujava as cuecas!
Era a tua primeira menstruação! Com os teus 10 anos, começas a sentir o prazer de ser mulher!
Contudo és ainda uma criança!... Meiga, rebelde, exaltada, triste, alegre!
Eu senti nos meus 35 anos, como o tempo passa! Agora já tenho duas mulherzinhas em casa. Agora vais tu, a mais pequenina, começar a despontar e a abrir para a vida.
Sem me aperceber, vejo que as minhas filhas deixam de ser  "as minhas meninas" para se tornarem "as minhas mulherzinhas".
            Como ainda está perto o tempo em que eu te mudava a fralda! Como está ainda recente na minha memória a alegria que sentias quando te vias sem fraldas e gatinhavas por cima da cama, dando gargalhadas de alegria e de prazer!
Hoje é um dia especial para ti e para mim. A Primavera trouxe-te o presente de seres mulher.                                                                                                                                                                                                                                                                                                               

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