MARTA

MARTA
O ADEUS PRECOCE DA MINHA ESTRELA MAIOR

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

O ANO DE 1995


1995

O mês de Janeiro de 1995 não trouxe nada de bom à Marta. No dia 6 de Janeiro ela escreve na agenda : " Fim!".
Nesse fim de semana, ela veio a casa e disse-nos que estava tudo acabado com o Paulo, vinha muito, muito triste. As grandes discussões havidas entre ambos deixaram-na completamente destroçada e vinha com a ideia errada de que a relação tinha falhado por sua culpa.
O Paulo culpabilizava-a pelo falhanço da união, quando todos nós sabíamos quanto esforço despendeu a Marta para que tudo corresse bem! Falámos com ela, procurámos dar-lhe o nosso total apoio, tivemos longas e longas conversas e no Domingo, quando a fomos levar ao autocarro, para Beja, já nos pareceu mais confiante no futuro e nas suas capacidades para resistir a tão grande golpe.
O primeiro passo a dar seria procurar um quarto, sair da casa onde ambos moravam,  para que se afastassem e ela não sofresse tanto, visto que o Paulo continuava na mesma casa. O sofrimento da Marta era enorme!... Estava em plena época de exames e não queria que estes fossem mais perturbados do que já tinham sido, ela tinha consciência de que precisava de estabilidade e tranquilidade para enfrentar os exames.
No dia 13 de Janeiro, fez a primeira frequência de Inglês e veio a casa passar o fim de semana. Continuava muito nervosa, tristíssima e nada a conseguia tirar daquela profundo desgosto. Conversámos muito. Ela sentia que tinha todo o nosso apoio, mas precisava de fazer a sua catarse para depois sair reforçada desta grande provação.
Naquela tarde de Domingo, a lareira estava acesa. A Marta sentada num dos  bancos de pele, junto ao lume, estava muito triste e pensativa. Resolveu ir buscar um cigarro, e disse-me em jeito de desculpa:
"Mãe, tenho que fumar um cigarro para acalmar!..."
 Era a primeira vez que eu via a Marta a fumar!
Soube, mais tarde, pela Rita e pelo Paulo, que a Marta fumava bastante, desde muito nova. Durante todo este tempo, ela conseguiu esconder-nos o hábito de fumar! O que mais me admira é que ela e a Rita nos reprovavam imenso quando eu e o pai fumávamos, sentiam-se muito incomodadas com o fumo!
Calculo o motivo por que a Marta escondia de mim o hábito de fumar, tem a ver com uma discussão que nós tivemos quando ela frequentava o 8º ano e era muito amiga da Clara.
Um dia, já ela estava deitada, pronta para dormir, precisei de uma esferográfica e como não encontrasse nenhuma, fui à sua pasta da escola buscar uma, aí encontrei um maço de cigarros e um isqueiro.
Fiquei desesperada! Ela era muito nova para começar a fumar! Perguntei-lhe se ela fumava e desde há quanto tempo? Disse-me que não, que os cigarros eram da Clara, que esta os deixava na mala dela, para que a mãe não soubesse. Depois de muito conversarmos sobre o vício do tabaco e outros vícios, fiquei mais descansada, mas não muito convencida!
No dia seguinte, perguntei à Clara de quem eram os cigarros e esta disse-me que eram dela, que os dava à Marta para guardar todos os dias, antes de ir para casa. Repeti à Clara toda a conversa sobre os malefícios do tabaco e acreditei nelas. A Marta nunca chegava a casa a cheirar a tabaco e por isso comecei a acreditar que a discussão tinha dado os seus frutos!
Afinal, como andei enganada estes anos todos! Nunca vi a Marta fumar, e algumas vezes conversávamos sobre os perigos do tabaco e ela concordava comigo. Este episódio vem confirmar uma característica do temperamento da Marta. Como me tinha dito que não fumava, escondeu-o sempre de mim, pois ela sabia que me estava a "omitir" uma coisa que me havia garantido não fazer.
Ela sabia que depois de crescida, podia dizer-me que fumava e que eu iria respeitar a sua decisão. Há certas atitudes do ser humano que nos deixam desconcertados, esta é uma delas! Porquê esconder um vício durante tantos anos?
Quando mostrei a minha indignação à sua amiga Patrícia Lança, dizendo que não percebia a razão da atitude da Marta, ela contou-me, que a Marta sempre me quis esconder que fumava. Então, todos os dias, quando regressava a casa vinda da escola, quando o comboio se começava a aproximar da estação de Massamá, ela seguia um autêntico ritual. Tinha uma bolsinha de pano para um penso higiénico, que eu lhe comprara, para usar na mala, para uma emergência. Aí, junto ao penso, colocava o maço de cigarros e o isqueiro. Trazia sempre um frasquinho de perfume, e colocava umas gotinhas atrás das orelhas e no pescoço. Depois metia na boca um bocadinho de pastilha elástica, para quando chegasse a casa ainda viesse a mastigar e depois chegava-se perto da Patrícia ou da Aires e perguntava-lhes: - “ Cheiro bem? Não cheiro a nada, pois não?” e  quando acabava de fazer tudo isto, o comboio parava na estação. Elas achavam imensa graça a tudo aquilo e fartavam-se de rir. Para elas era engraçadíssimo a atitude repetida e constante da Marta, que não havia um dia que não a realizasse!!!
Nessa tarde de Domingo no Janeiro de 1994, fomos levá-la ao autocarro a Lisboa e pareceu-nos um pouco mais animada. A semana decorreu normalmente e a Marta estava muito esperançada em ir morar com a colega Ana Ganhão, do mesmo  curso, de quem era muito amiga.
No Sábado próximo, dia 21de Janeiro de 1995 era o dia dos seus anos. Veio de Beja, na Sexta-feira, de autocarro para passar o dia de aniversário connosco.
A Rita veio do Algarve e a avó Amélia veio do Alentejo. Não tínhamos vontade de fazer  festa, pois todos sabíamos como a Marta estava infeliz e todos nos lembrávamos como tudo tinha sido tão diferente no ano anterior, quando completara os  20 anos!

Dia 21 de Jan 95


A Marta pediu-me que não fizesse nada para os anos dela. Estava muito triste e não lhe apetecia fingir que tudo estava bem. Pediu-me que não lhe fizesse bolo de aniversário, almoçámos e depois de almoço, apareceu a Sara, amiga da Rita. Estivemos todos a conversar sentados à lareira, a avó Amélia estava connosco e também ela sentiu como a Marta estava triste e desgostosa. Pusemos a mesa para o lanche, lanchámos e por volta das seis horas da tarde, telefonou o Zé Manuel Almeida dizendo-nos que o pai, o tio Zé Manuel, tinha dado entrada nas urgências do Hospital do Barreiro com um enfarte do miocárdio. Ficámos muito preocupados, pois a sua situação clínica parecia grave. Decidimos ir imediatamente para o Barreiro. A Marta , a Rita e a Sara foram para um café aqui perto de casa. Lembro-me de ter dito à Marta: "Oh, Marta, não vamos poder continuar o lanche dos teus anos, porque temos que ir fazer companhia à tia Maria José!... Além disso, temos ainda muitos anos para festejarmos os teus anos!..." . A Marta olhou-me com uns olhos muito tristes e disse-me:
" Não faz mal, nós vamos um bocado ao café e depois vimos para casa, não te preocupes!..."
Chegámos bastante tarde do Barreiro. A Marta e a Rita esperavam-nos sentadas no sofá da sala, muito juntinhas uma à outra. Sempre gostaram deste modo de  se sentarem, ou melhor, deitarem,  ficando aí “enroscadas” durante bastante tempo. Tinham ido buscar um filme de vídeo, tinham-no visto e agora conversavam uma com a outra.
Desde esse dia, a Rita nunca mais esteve com a Marta. Telefonaram-se durante os quinze dias que se seguiram, mas nunca mais se viram.
Durante a semana que passou, falei muitas vezes com a Marta. Estava combinado fazer-se a matança do porco, em Amareleja, no fim de semana, dia 28 Janeiro. Quando falávamos ao telefone, a Marta insistia comigo para que eu fosse com o pai à matança, pois ela também iria lá ter. Eu dizia-lhe que não ia pois não gostava de matanças e que sempre me fizera muita impressão ver tanta carne. A Marta voltava a insistir e eu voltava a dizer-lhe que não ia. Hoje, tenho pena  por não lhe ter feito a vontade, ainda ouço a sua voz ao telefone, muito meiga e doce, pedindo-me para que eu fosse.
Não fui. A Marta chegou sábado a Amareleja, vinha bem disposta e de boa saúde. Ajudou na matança, trabalhou imenso, e esteve sempre muito bem, com toda a sua genica e força.
O avô Vitalino também lá estava e a imagem, que guarda na sua memória, é a da Marta a correr pelo quintal fora, com os cabelos compridos levados pelo vento, para ir telefonar ao matanceiro, pois este estava a demorar-se. A Marta sempre foi uma pessoa muito activa, sempre pronta ajudar e a resolver as situações mais diversas que se  deparavam. Depois do jantar, fez um chá de limão para o avô Vitalino beber, pois este queixou-se que se sentia constipado e ela foi logo, muito resoluta, fazer-lhe um chá. Ajudou o Rodriguinho nos trabalhos da escola e brincou com o André, sempre teve muita paciência para brincar com os primos e adorava-os.
Falei-lhe nessa noite para a Amareleja, estava bem disposta e pensava ir na camioneta das oito horas da manhã, de Domingo,  para Beja, pois tinha que aproveitar para estudar e descansar um pouco.
                  
                   A semana de 30 de Janºa 3 de Fev.º

Costumo dizer que a minha ignorância em relação à medicina, fez com que eu não me apercebesse de como era grave o estado de saúde da Marta. Eu e todos aqueles que com ela conviveram durante os seus últimos cinco dias.
Na Segunda-feira, dia 30, a Marta levantou-se cedo, como de costume, e sentiu-se adoentada. A Escola ficava bastante longe da casa da Marta e como a manhã estava muito fria e ela não se sentia suficientemente forte para enfrentar os graus quase negativos dos Invernos de Beja, resolveu chamar um táxi  que a levasse à Escola.
À noite, quando lhe telefonámos,  contou-me que tinha ido de táxi, pois sentia-se um pouco doente. "Parece-me que vou ter gripe!... Vou ver se tenho febre"- disse-me.
 Desliguei o telefone e não me preocupei mais com a saúde da Marta. Era Inverno, estava muito frio e tudo indicava que era uma gripe ou constipação que ela ia ter.
Terça-feira, 31, à tarde, depois de vir das minhas aulas, telefonei à Marta para saber como se encontrava. Não estava melhor, contudo tinha ido às aulas na parte da manhã.. Quando me atendeu o telefone, vinha muito ofegante, e enquanto falava comigo, eu sentia que estava com dificuldades para  respirar. Perguntei-lhe se tinha vindo a correr para atender o telefone e disse-me que não. Que, às vezes, ficava assim com muita dificuldade em respirar. Fiquei muito preocupada. Disse-lhe para marcar consulta no médico o mais urgente possível, e ela concordou. Passado algum tempo, voltei a ligar-lhe e já tinha a respiração normal.
Quarta-feira, 1de Fevereiro, a Marta continuou a  assistir às aulas, os exames estavam marcados e precisava das aulas para se preparar.
Foi ao médico, Dr. Luís Capela, médico de Clínica Geral, a trabalhar nos SAMS, e deve ter lá chegado muito cansada e muito nervosa. Penso que a Marta se estava a dar conta de que estava realmente doente. Queixou-se ao médico que andava doente, com um grande cansaço, que se tinha zangado com o namorado e que andava muito "stressada" com as frequências, penso que deve ter descrito um quadro clínico com o seu habitual à vontade e optimismo. O médico diagnosticou ansiedade, arritmias e nervoso!. Fez-lhe logo ali um electrocardiograma que deu um descontrolo enorme, com 120 pulsações por minuto. Voltou a fazer-lhe outro, depois de ter conversado com a Marta, deve ter-lhe dito para ela se controlar e descontrair e segundo parece, este novo electrocardiograma já não apresentava  sinais de doença, (ambos os electrocardiogramas sumiram, após a morte da Marta!). A Marta saiu do consultório, já era noite, e quando chegou à rua, voltou a sentir-se muito mal, sem forças para ir para casa. Em vez de voltar para o consultório, pois deve ter achado que era tudo nervos! telefonou à Joaquina, companheira na mesma casa, para que a fosse buscar de carro, pois estava sem forças para ir para casa. Tudo estava contra a Marta, a sua grande força para vencer obstáculos, a sua  forte constituição física e a ignorância sobre a doença.
A Marta estava muito mal, mas ninguém se apercebeu disso!
Telefonei-lhe, já tinha ido comprar os medicamentos receitados pelo médico, sentia-se melhor. Sempre que eu lhe telefonava, ela dizia-me que se sentia melhor; penso que era sincera!
Disse-me que o médico a tinha mandado fazer uma radiografia ao tórax, e que lha tinham marcado para a próxima segunda-feira, dia 6. Então, eu disse-lhe que iria para Beja, no Sábado de manhã, passaríamos o fim-de-semana juntas, iríamos fazer a radiografia segunda-feira e depois vínhamos para Massamá, para aí aproveitar os oito dias de férias das frequências.
A Marta insistiu comigo para que eu não fosse, que não valia a pena eu ir e que estava bem sozinha. Eu insisti e ficou combinado que no Sábado de manhã eu chegaria a Beja.
Quinta-feira, dia 2 - Apesar de adoentada e de ter um pouco de febre, penso que nunca ultrapassou os 38º, a Marta continuava a ir às aulas e a estudar. Na aula de Inglês, sentiu-se mal, estava muito branca e quase a desmaiar e pediu à professora que a deixasse sair, para ir comprar uma garrafa de água. A  professora apercebeu-se que ela estava muito mal disposta e perguntou-lhe o que é que ela tinha. A Marta disse-lhe que andava doente e que se sentia muito nervosa, então a professora ofereceu-lhe um calmante, que a Marta tomou e passado pouco tempo já se sentia muito melhor. Todo este mal-estar dava-lhe a ideia errada de que o que tinha eram nervos!
Sexta-feira, 3 - A Marta levantou-se e foi para as aulas. Tinha aula com a Maria Albertina. A Maria viu-a com um aspecto muito abatido e doente e por isso combinaram ir almoçar juntas. Não sei onde almoçaram, sei apenas, que  a Marta comeu carapaus fritos com arroz de tomate e que teve muito prazer na refeição. Depois do almoço, foram a Ferreira do Alentejo ver as obras da casa dos pais da Maria e aí a Marta esteve sempre bem disposta. Subiu e desceu escadas e não manifestou grande cansaço. Pelas 16,30h, pediu à Maria que a fosse levar a casa, a Beja, pois precisava de estudar, e aí ficou o resto do dia.
A amiga Patrícia fazia 21 anos, no dia 3 de Fevereiro,  telefonou-lhe a dar-lhe os parabéns. Contou à Patrícia que andava doente, mas que agora se sentia melhor. Disse-lhe que estava à espera da minha visita e que a partir de 2ª feira já estaria em Massamá e que aí iriam encontrar-se.
À noite, telefonei-lhe a confirmar que chegaria a Beja cerca das 10h da manhã. Voltou a insistir comigo para que eu não fosse lá cansar-me pois ela estava mais ou menos bem disposta. Não concordei e ficou mais uma vez confirmado que eu iria. Foi a  última vez em que falámos. Eu estava tranquila, pois sentia pela  voz  da Marta que se sentia um pouco melhor.

Sábado, dia 4 - dia fatídico!

MARTA NO MONTE DA TIA DO PAULO.ÚLTIMA FOTO DEZEMBRO DE 1994

Sábado, dia 4 - dia fatídico!


Eu e o Zé levantámo-nos cerca das 7 horas da manhã. Tínhamos combinado com o Tó, irmão da Vina, sairmos de Massamá, bastante cedo, em direcção a Beja. O Tó e o Zé iriam deixar-me a Beja e eles depois seguiam caminho para Amareleja, para engarrafarem  o vinho. A manhã estava muito calma e tranquila. Um sol de Inverno iluminava os campos dando-lhes uma serenidade que se nos transmitia. Estavámos muito bem dispostos. Havia muito pouco trânsito e os dois carros seguiram sempre próximos um do outro. Parámos no Restaurante A Chaminé, ponto de paragem obrigatório para os viajantes daquelas paragens, bebemos café, apreciámos o sol esplendoroso daquela manhã fria de Fevereiro e retomámos a nossa marcha até Beja. O Tó aproveitou para filmar o recinto do restaurante e a paisagem circundante. Fizemos  mais uma hora de caminho e lá estava Beja, com a sua majestosa torre de Menagem e o seu casario branco. Dirigimo-nos através das ruas adormecidas de Beja, para a casa da Marta. Eram 10,30h da manhã. Saímos dos carros, o Tó começou a filmar-me enquanto eu me dirigia para a porta do prédio e tocava à campainha. Aguardei um pouquinho e ouvi a voz ensonada da Marta no intercomunicador
" Quem é?....  sim...." . Então eu disse-lhe: " Marta é a mãe, não precisas de descer porque só trago dois sacos!..."
A Marta  respondeu-me: "Sim , mãe!"
Voltei a correr para o carro, o Tó conversava com o Zé e filmava. Peguei nos sacos e dispusemo-nos a entrar no prédio. A porta não se abria. Voltei a tocar para a Marta. A campainha tocava, tocava e ela não me respondia, comecei a inquietar-me, mas ao mesmo tempo pensava que talvez ela estivesse na casa de banho. Aqueles segundos pareceram-me horas. Porque é que ela não abre a porta? o que se passa? perguntava eu ao Zé e ao Tó. Coloquei o dedo na campainha e já bastante assustada não parei de tocar, o meu coração estava apertadíssimo!!!
O Paulo que dormia no outro quarto, acordou com o toque insistente da campainha e levantou-se. Encontrou a Marta caída em cima do sofá, mesmo à entrada da sala. Abriu-nos a porta, pegou na Marta, sentou-a no seu colo e procurou reanimá-la, baixando-lhe a cabeça. Quando chegámos lá acima, já ia com um mau pressentimento. Entrámos e o Paulo disse-me: "A Marta teve uma quebra de tensão e desmaiou!..." . Cheguei-me ao pé dela, tirei-lhe os cabelos lisos e compridos que lhe escondiam todo o rosto e vi a Marta, com uma expressão terrível, com os olhos vidrados e sem vida, os lábios roxos e uma cor de cadáver. Fiquei assustadíssima! Aquilo não era tensão baixa, o que seria?!...
Deitámo-la no sofá e com o meu desespero de mãe, procurei fazer-lhe desajeitadamente uma  massagem cardíaca com ambas as mãos e a Marta começou a gemer e  a deitar espuma pela boca!... Que desespero! Que momentos tão aflitivos! Peço ao Paulo que chame uma ambulância, com a máxima urgência. A Marta está muito mal. A Marta está muito mal. O Zé e o Tó olhavam atónitos toda a cena. Não me lembro se procuraram ajudar-me, eu chamava a Marta para que ela reanimasse. Os bombeiros apareceram. Não vinha nenhum médico de urgências. Vinha o motorista da ambulância e um rapaz de 18 ou 20 anos sem qualquer preparação. Precisávamos de levar a Marta o mais rápido possível para o hospital. Não houve gritos, não houve barulho. Ninguém teve tempo de se manifestar. Penso que os vizinhos do prédio não se aperceberam do drama terrível que estava a acontecer no 2º andar Esquerdo. Acompanhei a Marta na ambulância. Havia uma máscara de oxigénio que o rapaz procurava pôr na boca da Marta, sem qualquer convicção, a Marta espumava da boca e gemia. Os solavancos da ambulância faziam-me andar aos tombos, parecia-me que iam devagar de mais. Dirigi-me ao motorista e pedi-lhe para irmos mais depressa: "Por favor, vamos mais depressa, a minha filha está muito mal!..."
O homem, mal humorado disse-me: " Não posso ir mais depressa por causa do trânsito!..." . Mas ouviu o meu pedido, ligou a sirene e com toda a força  lá fomos a caminho do hospital.
A Marta deu entrada na sala dos cuidados intensivos do Hospital de Beja, eram cerca das 11,30 horas.
Dispusemo-nos a esperar. Esperar era só o que podíamos fazer. Olhávamos uns para os outros sem encontrarmos resposta às nossas interrogações. A partir do momento em que a Marta entrou nos cuidados intensivos, eu fiquei mais descansada, um pouco mais tranquila. Nunca chorei.
Esperava a todo o momento a chegada do médico dizendo-me que a Marta já tinha reagido e estava bem. " A Marta era a mais saudável, a mais forte, a mais corajosa, nada de mau iria acontecer-lhe! " - pensava eu. E dizia-o ao Zé, ao Tó e ao Paulo. Não nos atrevíamos a fazer quaisquer prognósticos. Nada sabíamos do que estava a acontecer, lá dentro, naquela sala onde entrara a Marta.
Começámos a achar que o tempo tinha parado. Ninguém nos vinha dizer nada, ninguém se nos dirigia. Ao fim de uma hora, o médico mandou-nos chamar, a mim e ao Zé, e disse-nos que a Marta estava muito mal, que não reagia aos tratamentos e que estavam sem esperanças de a salvar. Deixaram-nos ficar no gabinete ao lado da sala onde estava a Marta. Aí comecei a perceber que a situação era gravíssima. Ninguém, médicos e nós, sabia dentro daquele hospital qual a doença que vitimava a Marta. Propus levarmos a Marta de helicóptero para Lisboa, disseram-me que não valia de nada. Penso que nesse momento a Marta já estaria morta.
O médico de serviço disse-me que por duas vezes a Marta reagiu aos tratamentos, mas por breves segundos, e que ainda conseguiu dizer que tinha uma dor muito forte no pulmão. Na sala ao lado eu ouvia os médicos a chamarem-na, gritando o seu nome "Marta! ... Marta!..." , mas a Marta já não reagia a esses chamamentos.
Uma enfermeira veio ter comigo e disse: - " Se acredita em Deus, reze, só um milagre pode salvar a sua filha!..." Agradeci-lhe, mas não encontrei palavras para rezar a Deus! Ele tão poderoso, consente que uma jovem, linda, boa, meiga, sem vícios, que adorava viver e adorava a vida, morra ?!
Não encontro palavras para Lhe dirigir. Viro-me para a parede da sala onde está a Marta e com as mãos na parede, falo-lhe muito baixinho e digo-lhe: " eu estou aqui, eu estou a dar-te a minha força, Marta a mãe está aqui, por favor não partas!... e repito, com toda a minha convicção: "Força Marta, Força.... Força...." .  Sinto-me impotente. Sinto que a Marta se me escapa. Sinto que ela está morta. Não choro alto, não grito, não tenho nada para dizer ou fazer. Estou vazia, parada, em choque.
Vêm perguntar-me se quero um calmante, tomo-o e aguardo que venham ter comigo. Estou de mãos dadas com o Zé. Precisamos da força de ambos para aguentarmos este momento tão terrível. Não falamos. Esperamos. Há um grande silêncio à nossa volta. O Paulo vem até junto de nós. Ficamos todos juntos no corredor. A porta abre-se e o médico diz-nos:- " A Marta está morta! Não podemos fazer mais nada. Podem entrar!..."
Eu estou atónita, eu não quero ouvir aquelas palavras horríveis, olhamo-nos incrédulos e de repente o Paulo transborda toda a sua raiva , dá um murro na porta em frente, que fica com um buraco enorme e sai a correr do hospital. Ainda corro atrás dele, mas como ele sai para a rua, fico ali, digo ao Tó que a Marta morreu e que vá dar apoio e assistência ao Paulo que está completamente desnorteado. Volto de imediato para dentro e entro na sala onde está o corpo nu  lindo da Marta. Tudo nos parece irreal, tudo nos parece uma mentira. Choro. O Zé chora a meu lado. Há médicos e enfermeiros na sala e todos choram a Marta. Olho incrédula. Vêm ter comigo, pergunto-lhes se têm a certeza de que a Marta está morta, abanam a cabeça a confirmar. Aproximo-me da Marta, está gelada, está nua e o seu corpo esbelto de jovem de 21 anos jaz ali. Mexo-lhe, massajo-a, seguro-lhe nas mãos habilidosas e bonitas, beijo-a e não percebo o que estou ali a fazer. Quero acreditar no que me disseram, "A Marta está morta", mas não consigo acreditar, no meu cérebro tudo está em turbilhão. Perco a noção do tempo. Estamos ali há muito pouco tempo. Não há nada que eu possa fazer ali. Olhamos, mexemos na nossa filha tapada com um lençol verde claro . Ao fim de algum tempo, dizem-me que a Marta tem que ser levada dali, para onde? pergunto;  para a Morgue! que momentos terríveis estamos a viver! a realidade é tão brutal, que nos parece um pesadelo. Levam a Marta. Vejo-a a ser levada. Ficamos sós. Olham-nos. Há muita pena nos olhos do pessoal. Olhamos sem ver. Precisamos de sair dali, daquele pesadelo!
São 14horas da tarde! Cá fora sentimo-nos perdidos. Como podemos deixar que a nossa filha morresse dentro daquele hospital! Quando ali entrei eu tinha tantas esperanças! Três horas foram suficientes para destruírem uma família. A Marta partiu, para sempre. O Sol encandeia-nos. A tarde soalheira de Inverno está amena e tranquila. Como a Marta gostava dos dias de Sol. Nunca mais verá o Sol, as árvores, os pássaros.
Dirigimo-nos para o carro, entramos, fechamos as portas e ficamos parados, somos autómatos! Precisamos de sair dali, mas uma força misteriosa obriga-nos a ficar. Vamo-nos sem a nossa filha?  Como pode isso acontecer?
Partimos daquele local tão cruel.
Vamos para a casa da Marta, não temos outro sítio para onde irmos. Ali tudo nos lembra a Marta. Choramos, choramos muito. Olhamos a casa .As suas coisas, os seus livros, o seu cheiro reinam por toda a casa.
A cama  está aberta como ela a deixou, quando saiu da cama a correr para me abrir a porta, a mim e à morte! No parapeito da janela há um copo de iogurte vazio e uma banana em meio que a Marta comeu ao deitar. Ao lado o dossier aberto, com apontamentos e a esferográfica em cima, indicando que o sono fora mais forte e que o estudo ficara em meio. Vamos conseguir resistir a tão grande desgosto? Precisamos de avisar a família e os amigos. É importante que eles saibam o que se está a passar.

Tribunal Judicial da Comarca de Beja
Serviço do Ministério Público

Conc 9-5-95

Resulta dos autos que no dia 4 de Fevereiro de 1995 Marta Varela Andrade Rodrigues Baleiro, (id- fl. 2), faleceu no Hospital Distrital de Beja, tendo sido comunicada a sua morte por este hospital - fls. 10 a 12 e 2.
Efectivada a autópsia resulta que a causa da sua morte se ficou a dever a edema pulmonar, conforme relatório de autópsia de fls. 6.
Foi efectuada recolha de vísceras para realização de exames toxicológicos, tendo os mesmos resultado negativos - fls. 16.
Aprovado que se mostra a causa da morte não resulta dos autos qualquer outra diligência útil a realizar no seu âmbito atendendo ao facto de que a sua morte se fica a dever ao referido edema pulmonar e não haver quaisquer suspeitas mínimas de crime relacionado com a mesma.
Nesta conformidade, declaro encerrado o presente inquérito e determino o seu arquivamento, nos termos do disposto no artº 2777, nº1 do C.P.P.
Cumpra-se o artº277ª, nº3, C.P.P. na pessoa do pai da falecida - fls.13

Assinatura ilegível

A MINHA MARTA: UMA ESPÉCIE DE INTRODUÇÃO

A MINHA MARTA: UMA ESPÉCIE DE INTRODUÇÃO

FÉRIAS EM AMARELEJA



férias em Amareleja

Festa final de ano 1992 na Escola da Paiã


FOTO MÃE E MARTA QUANDO VIERAM DA MATERNIDADE

 A MÃE E A MARTA QUANDO VEIO DA MATERNIDADE

O NASCIMENTO


O nascimento
            Numa tarde fria de Inverno, pelas 16 horas, do dia 21 de Janeiro de 1974, nasceu a Marta na Clínica de S.Gabriel em Lisboa. Para vir ao mundo a Marta teve que lutar muito, pois tanto a gravidez como o parto foram bastante conturbados. Sinais constantes  de aborto, obrigaram-me a tratamentos constantes e a um repouso que me deixavam muito nervosa e ansiosa. Com sete meses de gravidez, voltei a ter sinal de aborto e por isso  tive que ter mais repouso, para ver se o bébé nascia na data prevista. Quando faltavam umas duas semanas, eu, o pai e a Rita resolvemos ir de malas e bagagens  para Benfica, para casa da avó Amélia e do avô Vitalino para ficármos mais perto da clínica.
Entrei na Clínica dia 20 por volta das 10 horas da noite. Sentia grandes contracções e estava na data prevista para o parto. O meu médico assistente era o director da clínica e eu sentia-me apoiada, além disso, a Rita tinha também nascido ali e apesar de ter nascido de cesariana, tudo tinha corrido bem.
O médico convenceu-se de que como era o segundo filho, eu teria um parto normal, então, devido a essa ideia do obstetra tudo se complicou. Comecei em trabalho de parto, com muitas dores,  mas a dilatação não se fazia, e o sofrimento começou a ser muito grande.
 De tempos a tempos, aparecia uma enfermeira e eu pedia-lhe que chamassem o médico, pois sentia que não aguentava por mais tempo, tantas dores. Passadas não sei quantas horas, para mim foram uma eternidade, comecei a descontrolar-me e penso mesmo que perdi os sentidos. Chamaram o médico e imediatamente fui para a sala de operações, onde me foi feita uma cesariana. Nasceu uma menina perfeita, mas já com sinais visíveis de sofrimento, por isso a bébé foi para a incubadora onde esteve cerca de doze horas. Só no dia seguinte vi a minha bebé.
Partilhei o quarto da Clínica com uma jovem parturiente inglesa que dera à luz um rapaz. Ela disse-me que se tivesse tido uma rapariga  chamar-se-ia Marta. Fiquei a pensar no nome, que me soou bastante bonito e imediatamente pensei que a minha bébé chamar-se-ia Marta.
Como gosto de nomes pequenos, logo ficou decidido, que este seria o seu nome.
A Marta sempre gostou muito do nome dela e às vezes, chamávamos-lhe de uma forma carinhosa  Martinha ou Martocas.
Foi uma bébé muito saudável e bem disposta. Quando fez um ano de idade já andava e dizia algumas palavras. O facto de conviver com crianças, um pouco mais velhas que ela, do prédio, da rua e com os primos, desenvolveu-a e tornou-a muito sociável.
AMarta tinha três meses quando se deu a Revolução do 25 de Abril de 1974. A partir dessa data, o nosso país sofreu  grandes modificações políticas e sociais.
Tanto eu como o Zé éramos muito jovens e há muito que desejávamos  mudanças no regime, por isso esperávamos que a Revolução do Movimento das Forças Armadas viesse a  transformar Portugal num país democrático, como na verdade veio a acontecer, onde todos os cidadãos pudessem participar na escolha dos governantes, onde não houvesse censura, nem polícia politica e sobretudo que acabasse com a guerra no Ultramar, a qual parecia nunca mais terminar.
           Vivíamos intensamente todas essas mudanças, necessárias para a libertação do  país de  40 anos de ditadura, mas como tínhamos as crianças muito pequenas não nos era possível uma participação mais activa. Foi com enorme e grande entusiasmo que participei na grande manifestação do 1º de Maio de 1974, enquanto o Zé ficou com as crianças, vendo pela televisão toda aquela  enorme multidão que  saiu da Alameda Afonso Henriques, subiu a Av. Almirante Reis para se dirigir ao estádio 1º de Maio, onde os principais dirigentes políticos puderam usar da palavra. Tudo era novo e apaixonante para quem nunca tinha podido expressar livremente as suas ideias.

UMA ESPÉCIE DE INTRODUÇÃO


Desde que a Marta partiu, que a ideia de escrever sobre a sua vida, não me tem abandonado.

O receio de não ter a capacidade suficiente para transmitir aos que me irão ler, tudo aquilo que tenho para contar, tem-me inibido levando-me a adiar e a atrasar o projecto. 
Durante estes anos, a dúvida, de que o conteúdo deste livro não interessasse a quem o fosse ler, surgia-me constantemente. Pensava: " - Talvez interesse àqueles que com ela conviveram, que a amaram, que conheceram o seu carácter, a sua sensibilidade, a sua disponibilidade para ajudar, a sua meiguice ... "  animada por este pensamento, voltava a escrever mais umas linhas.
O principal objectivo deste livro será dar a ler aos que a conheceram ou àqueles que só agora tomaram conhecimento da sua breve passagem por este nosso Planeta Terra, as suas vivências, a sua sensibilidade, os seus anseios, as suas paixões, a sua grande vontade de viver e de vencer os obstáculos que por vezes encontrou pelo caminho.
Assim, reconhecendo a minha pouca habilidade criativa para a escrita, peço aos que me lerem, que desculpem as repetições, o exagero e até mesmo as incorrecções linguísticas, pois tudo o que se segue foi escrito com o coração e a emoção, sem ter em grande conta o "estilo literário".
Quando um filho nasce procuramos guiá-lo com uma infinita paciência, mostrar-lhe os obstáculos, acautelá-lo contra tudo o que queima, corta, envenena, asfixia, morde ou arranha. Alertamo-lo para resistir à atracção do abismo, fazemos ver que a água pode trair aqueles que confiam na sua doçura ou na sua vibração mágica; quando mais tarde, estamos convencidos de que o preparámos contra todos os perigos, de que o ensinámos a seguir o seu caminho na sociedade, de que tudo fizemos para o tornar atenta à vida e respeitador de tudo o que vive, quando julgámos que lhe transmitimos tudo o que de melhor há em nós, com a missão de, por sua vez, legar todos esses conceitos aos seus descendentes, quando julgamos que tudo está na "ordem estabelecida", bruscamente, somos confrontados com a dura realidade de que nem sempre a "vida" é como nós a sonhamos ou queremos.
Nada se cumpriu! Nada está em ordem!  Aquela filha que nós tanto protegemos, franqueou sozinha as portas da morte, como se a nossa vigilância de sempre, se tivesse partido de súbito, abrindo uma brecha à fatalidade( Belline, 1980:13).
A morte da Marta é a morte impossível, inaceitável!...
Alguém disse: "Os mortos são deste mundo durante tanto tempo, quanto os guardamos na nossa memória ", sinto que esse pensamento se ajusta a todos aqueles que como eu, perderam um filho.
Um filho perdido que vive no nosso pensamento de todos os dias, como se o trouxéssemos de novo dentro de nós, no aconchego da nossa barriga protectora, mas desta vez para não mais o deixarmos vir ao mundo. Ele torna-se o nosso "fantasma" interior, que nos acompanha, a quem pedimos conselhos, a quem pedimos "força" nos momentos de fraqueza, com quem "dialogamos" quando a saudade é insuportável.
A princípio, pensamos que só a nós aconteceu tão grande fatalidade, estamos mesmo "insensíveis" ao sofrimento dos outros; pois se nem sequer conseguimos lidar com o nosso sofrimento, como lidar com o dos outros? Depois, lentamente, muito lentamente, apercebemo-nos que há tantos pais a quem lhes aconteceu a mesma tragédia e começamos a pensar na melhor maneira de vivermos com esta brutal realidade.
Como e onde procurar a melhor forma para podermos suportar  uma tão grande dor, sem perder as faculdades mentais e psíquicas, as quais muitas vezes sentimos a oscilar e a fraquejar?
"- Tudo está reduzido a Nada!" - é o meu pensamento mais constante!
Procurei na escrita de um diário, um pouco do equilíbrio psíquico que necessitava.Durante anos, todos os dias escrevi "uma carta" à Marta, onde lhe conto o meu dia, as minhas tristezas, as minhas alegrias, dou-lhe a saber que as misérias como a fome, a guerra, a maldade dos homens e as grandes injustiças sociais continuam a existir neste Mundo e que tudo e nada mudou desde o dia 4 de Fevereiro de 1995.
Ainda pensei publicar os meus diários, mas estão demasiado íntimos e o objectivo desta fotobiografia é dar a conhecer a Marta e não o meu sofrimento, devido à sua partida.
Resolvi dividir este livro, em várias partes e abordar nele os assuntos que sempre interessaram à Marta, pois uma das suas características  era prestar uma enorme atenção às suas origens, ao modo como eu e o pai nos conhecemos, falar dos amigos, em suma, ela adorava saber pormenores dos pequenos nadas que formam as nossas vidas. Era uma grande conversadora e sempre adorou partilhar com todos nós, os principais acontecimentos da sua vida.
Será  que conseguirei através destas páginas dar uma ideia da minha filha Marta? Conseguirei falar dela sem a trair? Conseguirei fazer surgir no espírito e no coração  dos que me vão ler a imagem de uma jovem que se lhe assemelha?
Penso que o posso esperar, pois a Marta era uma rapariga do seu tempo. Ficaria muito feliz  se muitos pais reconhecessem  os traços dos filhos nesta jovem de 21 anos, que soube aproveitar tudo de bom, que a vida lhe ofereceu.
Desde a sua morte que a própria essência da minha vida mudou e as reacções da minha sensibilidade para com o Mundo, que me rodeia, já não são as mesmas.
As provações que tenho passado  com a morte da Marta são um calvário. A dor não aparece de uma só vez, mas em vagas sucessivas de dores, que de cada vez são toda a dor, que se vão juntando e se vão acumulando e que pesam cada vez mais no coração.

Querida mãe

Todos nós pensamos que hoje é um dia como todos os outros mas para mim não o é, pois sinto algo de estranho quanto àquilo que vou escrever, pois eu quero  demonstrar-te o que sinto por ti, e a importância desse sentimento em mim.
Eu tenho a sensação que se escrever aquilo que sinto vou-me repetir muito, pois tudo aquilo que sinto é muito grandioso, assim acho que vou resumir em duas palavras que representam muito:
                                         Amo-te muito
Este é um dia em que todos pensamos o quanto é bom e importante ter uma Mãe, mas para mim o importante é ter-te a Ti como minha mãe.
Tenho que te escrever que tu és a mãe melhor do mundo e eu , mesmo estando longe, sinto-o ainda mais.
Penso em ti todos os dias e gostaria de poder dar-te um beijo todos os dias.O que eu sinto por ti é muito  forte, mas eu sei que isso tu entendes.
Neste postal só não entendo porque fizeram um boneco tão triste e com cara de mole, por isso vou pô-lo mais bem disposto tal como tu.
Adeus minha querida mãe, que passes um dia muito feliz e não fiques triste por não teres aí as  tuas filhas, porque estamos mais próximo de ti, do que aquilo que parece. Se fechares os olhos no Dia da Mãe vais sentir que eu estou aí a dar-te um grande beijo e a dizer:
                                 Obrigada minha Querida Mãe
                                                              Amo-te muito
                                                             Desta tua filha
                                                                 Marta Baleiro
     Beja, Maio 1993

            Foi minha intenção abrir a fotobiografia da Marta com este cartão do Dia da Mãe, pois o seu texto sintetiza o carácter e o temperamento da Marta. Estava sempre pronta a dar afecto e amor e a sua meiguice e afectuosidade estão aqui bem presentes .
            Desde muito pequena, que a Marta nos demonstrava, em qualquer momento, o seu carinho, o seu amor e a sua ternura. Gostava muito de se agarrar a nós, abraçando-nos e dando-nos beijos em constantes  manifestações de ternura . Nem sempre nós, os adultos estávamos dispostos a receber tantas manifestações de carinho e por vezes afastávamo-la  e "rejeitávamos" esses abraços e beijos, pois nem sempre estes eram dados nos momentos mais oportunos.
Sempre foi muito sensível e muito meiga e adorava  sentar-se junto de nós para que lhe fizéssemos "festinhas" e lhe déssemos beijinhos. Ela e a Rita sentavam-se no sofá grande da sala muito encostadas uma à outra, enquanto viam televisão ou ouviam música, pois sempre se sentiram muito bem, próximas e juntas. Levavam horas a mexer nos cabelos uma da outra. Estas manifestações de carinho revelam bem o grande amor e a grande ternura que sempre ligou as duas irmãs.
A sua grande sensibilidade e a sua meiguice originavam-lhe, por vezes, grandes decepções e dissabores, pois uma palavra mais agressiva ou um gesto mais brusco da nossa parte, eram suficientes para lhe provocarem um "grande desgosto" e, algumas vezes, tinha grandes manifestações de choro e de tristeza deitada em cima da cama, onde se refugiava..
A adolescência da Marta, devido ao seu carácter sensível e meigo, foi vivida com algumas manifestações de tristeza e, às vezes, eu como mãe, sentia-me bastante confusa e impotente para poder resolver tantos conflitos interiores e tantos "desgostos" de adolescente. À hora de deitar, passávamos as duas, longos momentos de conversa  para tentarmos "solucionar" esses "problemas" que tanto perturbavam a Marta. Sempre houve entre mim e a Marta uma grande ligação afectiva e apesar de muitas vezes nos aborrecermos e nos chocarmos,dando ocasião a algumas "discussões"  e a pequenos conflitos, estes eram facilmente resolvidos, pois tanto a Marta como eu, nunca conseguimos arrastar por muito tempo uma situação desagradável.
Nas vésperas de Natal de 1984, tinha a Marta 10 anos, tivemos uma "briga", já   não sei precisar qual o motivo, mas sei que nessa  noite, escrevi no meu diário o seguinte:
                                
                    Natal de 1984
            Querida Marta
Hoje fui má! Dentro de mim há um bichinho que me faz má! Sem querer ofendi-te! Sem me aperceber que te estava a magoar, fui dizendo palavras que te feriram e magoaram, depois não tive coragem suficiente para dizer que tinha errado. Não fui capaz de te dizer que nós mães  também erramos e que somos "duras" sem razão.
Tinhas um cartão para me ofereceres, onde tinhas escrito aquilo que o teu coração sincero tem lá dentro; zangada foste rasgá-lo!
Eu não merecia as tuas palavras lindas, lindas e belas, porque eu fui má!
Quando fui ao teu quarto,  vi bocadinhos de papel, todos amarrotados, todos rasgados como estava o teu coração de menina boa e meiga. Juntei bocadinho a bocadinho e encontrei a melhor prenda de Natal, que até hoje tivera...


A Marta nunca aceitou que "brincassem" com ela, e facilmente passava da boa disposição a amuada quando algumas palavras ditas por nós não lhe agradavam; nesses momentos eu chamava-lhe "Baleiruça" o que ainda mais agravava a situação, pois ela sabia que este termo se referia ao feitio sério e rigoroso do lado paterno, que raramente aceitam ou admitem uma "brincadeira".
A Marta teve um desenvolvimento físico e mental muito precoce. A passagem da infância para a adolescência foi feita muito rapidamente, o que originou que a Marta "sofresse" todos os estádios de desenvolvimento da adolescência duma forma bastante abrupta dando origem a grandes conflitos interiores, pois ela sentia-se já uma adolescente e nós ainda não estávamos mentalizados para essa mudança.
O seu corpo desenvolveu-se muito, bem como a sua postura perante a vida e perante os outros. Sempre foi muito responsável e conhecia bem os limites para as suas exigências.
Às vezes, quando eu não a deixava ir onde me pedia, chorava e dizia que esperava ansiosamente os 18 anos, pois com essa idade, ela poderia fazer tudo o que quisesse.
O facto da Marta ter passado por todas estas transformações durante a adolescência duma maneira saudável, fizeram dela uma jovem adulta, consciente das suas responsabilidades familiares, sociais e profissionais (finalizar o seu curso, o mais rapidamente possível!).
Frequentava  o 1º ano da Escola Preparatória de Massamá quando pela primeira vez foi menstruada. Sempre tivemos uma relação muito aberta e por isso quando chegou a casa disse-me o que lhe tinha acontecido. Nesse dia, 15 de Maio de 1984, escrevi no meu diário, este texto:

                                         Marta

Chegaste a casa com um olhar diferente. Trazias os olhos brilhantes de expectativa e ao mesmo tempo de medo!
Hoje desabrochaste para a adolescência.
Como uma flor na Primavera que desabrocha, tu também te tornaste uma "mulherzinha".
Hoje, no recreio da escola, tinhas sentido algo de anormal; um líquido quente que te sujava as cuecas!
Era a tua primeira menstruação! Com os teus 10 anos, começas a sentir o prazer de ser mulher!
Contudo és ainda uma criança!... Meiga, rebelde, exaltada, triste, alegre!
Eu senti nos meus 35 anos, como o tempo passa! Agora já tenho duas mulherzinhas em casa. Agora vais tu, a mais pequenina, começar a despontar e a abrir para a vida.
Sem me aperceber, vejo que as minhas filhas deixam de ser  "as minhas meninas" para se tornarem "as minhas mulherzinhas".
            Como ainda está perto o tempo em que eu te mudava a fralda! Como está ainda recente na minha memória a alegria que sentias quando te vias sem fraldas e gatinhavas por cima da cama, dando gargalhadas de alegria e de prazer!
Hoje é um dia especial para ti e para mim. A Primavera trouxe-te o presente de seres mulher.                                                                                                                                                                                                                                                                                                               

quarta-feira, 13 de abril de 2011

UMA PARAGEM... PARA RETOMAR O FÔLEGO...

Olá meus queridos amigos, leitores e seguidores deste meu espaço, dedicado à Marta...
De propósito, (ou não?) não arranjei tempo para vir escrever aqui no blog... ando cansada, sem força anímica para passar para o blog o que me vai na cabeça...
Como eu tenho pensado nas amigas da Marta, na Clara, na Aires, na Patrícia, na Olga, nos amigos da Paiã e não só, que me demonstraram tanto afecto e me deixaram aqui palavras tão bonitas...
Mas, inconscientemente, sem me aperceber bem como... não voltei a escrever aqui... o cansaço físico é grande... e quando chego a casa, por volta das 22 horas, depois das aulas, não arranjo força para vir para o computador...
Fui fazer análises, e fiquei a saber a razão deste cansaço extremo. Estou com uma anemia, e os valores da hemoglobina são preocupantes... hoje fiz uma transfusão de ferro, e não sei se é da transfusão ou não, apeteceu-me vir dar-lhes um OLÁ, e dar a todos aqueles que me andavam a seguir, esta explicação... prometo que daqui a uns dias, vou recomeçar estes meus posts, que me dão muito prazer em escrever...
Até breve...
Um grande, muito grande xi-coração a todos aqueles que não esqueceram a Marta, e que ainda a recordam como ela era na verdade: meiga, boa, compreensiva, tolerante, insatisfeita, revoltada com as injustiças, zangada com aqiueles que a faziam sofrer, mas que rápidamente, ela esquecia esse dissabor...
Zuzu

Como um livro aberto: não sei como é com os outros

Como um livro aberto: não sei como é com os outros